quarta-feira, 5 de abril de 2017

Os gansos do Nelinho


  No princípio, haviam poucos moradores, pessoas simples que foram levadas, por força da necessidade, a invadir um terreno que pertencia à prefeitura e que pra dizer a verdade nem era próprio pra se construir, já que havia o perigo das adutoras se romperem a qualquer momento.Alheios aos perigos, as famílias foram se instalando, cada qual a seu modo e criando seus filhos.
  O Nelinho, que veio do interior, achou de criar uns gansos em casa, mas ganso precisa de espaço e, é normal que ele vá pra rua, uma vez na rua é um Deus nos acuda, pois o bicho é territorialista, sendo assim, qualquer um que invada o seu território dele é uma ameaça...então ele ataca. 
  Com um cão que te ameaça, convêm bater o pé ou pegar uma pedra e ele se vai, mas, com ganso não adianta, ele vai pra cima, só lhe restará uma alternativa...correr. 
  Todo mundo reclamava pro Nelinho e ele, quando não ria, dizia desaforos, o Nelinho morava no meio da rua, as pessoas já ficavam em pânico quando chegavam lá.
Um dia, eu o Viana e o Djalma, encontramos a Rita e fomos visitar a Alcina, que morava no fim da rua, o Viana foi ver o César e nós ficamos por ali, fazia frio e era começo de noite, a Alcina estava desempregada e nos contava que, não havia comida pra fazer pro seu filho Edinho, pensamos em contribuir, enfiamos as mãos nos bolsos e nada, lamentamos o fato de não poder ajuda-la, a Rita fez menção de ir em casa, pra ver se tinha alguma coisa pra doar pra amiga e foi.
   Mas, logo voltou, ela e o Viana fugindo dos gansos, eles entraram no terreno e os gansos entraram junto, A Rita gritou:
_Alcina, tem um facão ai???
   E foi assim que os gansos do Nelinho viraram refeição...
   Diz a lenda que a Rita ofereceu um pedaço pro próprio dono e ele elogiou o tempero.

Quem vê cara...


É de praxe, no Pelourinho, todo paulista é perseguido, empurram-lhes fitinhas do senhor do Bomfim, roupas do Olodum, berimbaus, quadros mil e toda sorte de tralha, o turista paulista, assim como os nativos das outras capitais, são uma fonte de renda garantida.
Bom, esse paulista aqui, vai ao Pelourinho em qualquer hora e ninguém olha, ninguém oferece uma fitinha...no último passeio à Salvador, mostrei toda indignação.
Conheço o Buri para mais de 13 anos, basta aparecer um turista, ele vende o que tem na mão, um artigo que para mim sai por cinco contos, para o paulista sai por 50.
_Buri, você sabe que eu sou paulista né???
_Tú??? É coisa nenhuma, negão assim???é nada.
_Preconceito seu, em São Paulo tem uma rapa de negão.
_Oxiii, eu quero é prova.
Pegou meu RG e conferiu.
_São Paulo-SP.…por isso que você fala engraçado.
_. Pronto, tem fitinha aí???
_. Mas não é só isso não, meu rei.
_. É o que então, criatura???
_.....
_Fala.
_. É que tu tem uma cara de pobre da porra.
_Ó paí véi.

Fruta madura



Pra me desculpar da postagem do casal do 14, aquela que expus uma parte triste da minha infância e, posso ter dado a impressão de que a vida dos internos era sofrida, vou me redimir e contar sobre um casal que nos veio depois, a frase é batida, mas é real(depois da tempestade vem a bonança).
O seu João e a dona Helena trouxeram pra nós, a certeza de que a vida era muito boa.
O seu João era mineiro, daqueles mineiros de fala mansa, que contam histórias, conversam de igual pra igual e nunca recorria à violência, a dona Helena chamava os guris de filho.
Era o retorno do casal ao Educa, anos antes, eles cuidaram do pavilhão 13 e ainda que estivesse agora no 14, todos o chamavam de seu João do 13.
Logo que chegou, falou pros meninos, que quisessem, que se carpissem a produção seria divididas em partes iguais e uma parte seria dele.
Então fomos produzir e, com boa vontade, fazíamos muito mais em menor tempo.
Deu uma boa produção e vendemos tudo, a nossa parte deu pra comprar muitos doces e várias bolas de capotão oficial, com a parte dele, nos deu uma visita ao Zoológico e o melhor natal de todos os tempos.
O casal tinha dois filhos, o Cesar e a Lúcia.
O Cesar tinha 23 anos, formado em arqueologia, vivia viajando e quando vinha, trazia uns apetrechos da África e do Egito, vestia-se com botas de pele de cobra e tinha chapéus de John Wayne, era o herói da molecada e dos grandes também.
A Lúcia tinha uns 25 e era a criatura mais formosa em que os guris do 14 já haviam posto os olhos.
Quando ela passava, fazia um profundo silêncio, em seus olhos brilhava a luz, quando ela sorria, o dia se iluminava, quando ela respirava, a rosa tinha inveja. Pra os meninos do 14, havia a beleza e havia a Lúcia, ela era a beleza elevada ao cubo.
Do lado de fora do pavilhão 14, seguia-se uns 10 metros de terra batida e principiava-se um barranco de uns 2 metros, se muito, acima do barranco havia uns pés de uvaia, uma frutinha amarela que, mesmo quando amadurecia, era azeda.
Numa bela tardinha, eu o Viana e o Téquinha subimos cada um num pé e ficamos em cima, colhendo, tirando os bichinhos e comendo, enquanto isso conversávamos.
A Lúcia saiu para a área trazendo uma cadeira de praia, ajeitou-a na terra batida e se sentou os galhos das arvores não permitia que ela nos visse e nós a víamos nitidamente.
Escravo dela, o raio de sol iluminava e uma doce brisa veio beijar-lhe os cabelos negros.
Um galho me atrapalhava a visão e ao tentar me ajeitar num outro galho, pisei num galho mais fino e, feito fruta madura, cai.
A Lúcia se assustou e subiu o barranco pra me ajudar, não doía nada, mas eu gemia, gemia de vergonha.
A Lúcia, além de linda, era generosa:
_Onde dói?Perguntou agoniada.
Ainda a gemer, levei a mão direita à face esquerda, ela pegou a minha cabeça com as duas mãos e beijou-me a face.
No mesmo instante do beijo, as duas frutas que ainda havia nas arvores despencaram.

De histórias e lendas.


Saber ensinar é uma arte e isso não depende de se ter um diploma ou um registro em carteira.
Sempre disse que aprendemos mais coisas da vida com funcionários simples do Educandário Dom Duarte que com as pessoas que ganhavam para educar de fato, vou mais além, muito do que eu aprendi sobre a vida, veio de pessoas sem qualificações e com os meus amigos menores.
Se as mães dos internos soubessem, o que de fato, alguns laristas faziam, iam preferir jamais expor os filhos aos cuidados dessas pessoas.
Aos fins de semana, em dias de manutenção da piscina e de ausência de jogo do Grêmio, costumavam os internos reunirem-se no espaço que ficava entre a piscina e o lago, as arvores davam a sombra e os meninos pulavam em seus galhos, uns só ficavam na grama baixa, ouvindo a música que vinha dos alto-falantes do teatro.
Por ser um território neutro, é fácil de imaginar que o grupo fosse constituído por internos de quase todos os pavilhões, dois ou três de cada, ficavam ali, brincando de esconde ou de pega e, por vezes, de bobinho, sempre se achava uma bola.
Quando o açúcar baixava, sentavam ou deitavam-se na grama e alguém puxava um assunto.
E então, vinham histórias de lances miraculosos no futebol, histórias de assombrações, de internos fujões ou de violência extrema praticada por algum larista carrasco.
Via de regra, cada um contava coisas acontecidas em seus pavilhões, a história começava na boca de um narrador e o amigo ia concordando e terminando a história, ao término dessa, vinha outro e contava a sua, o amigo do mesmo pavilhão concordava e corrigia, os demais ouviam atentamente até o final, acabava virando um desafio, cada qual contava façanhas e bravatas dos amigos que moravam com eles e, ao fazê-lo, acabava pondo em evidência o seu grupo.
Cada fato heroico de alguém de um pavilhão, era atribuído aos demais e, a glória cabia a todos os moradores desse pavilhão.
Algumas dessas narrativas não tinham uma época precisa, falavam de um tempo remoto, coisas de pessoas e fatos de 30 ou 40 anos passados, esses fatos, na boca dos meninos, soavam como lenda.
Sempre gostei de histórias, mesmo que elas fossem, só lendas.
Numa tarde, o Claudinho do 16 contou uma que chocou a todos e essa era verídica, já que, parte dos personagens dela ainda viviam no Educa...
O Bambuzinho do 16, já era um menino crescido, bem provável que tivesse uns 12 anos de idade e sofria de incontinência urinária, quase sempre amanhecia com o colchão molhado.
O chefe do pavilhão, seu Alcides resolveu corrigir o problema de uma vez por todas.
Às 4:30 da madrugada, depois de constatar que o menino já havia urinado na cama, acordou todos os outros e foram para frente do pavilhão, o Bambuzinho teve que, num frio de rachar, tomar banho gelado e ficar nu encostado na parede.
O chefe ordenou que os outros meninos formassem uma fila indiana, todos tinham que passar e dar um tapa no rosto do infrator, caso alguém se recusasse, tomaria o lugar dele.
E, sob o olhar atento do carrasco, começou o deprimente espetáculo, alguns dos meninos da fila cuspiam na mão pra acertar com gosto, gelado e humilhado o garoto não soltava um ai, a cada tapa se ouvia o som da pancada.
Na metade da fila estava o Francisco, enquanto seguia a fila ele não se preparava pra bater, os olhos fixos no menino que apanhava e não emitia qualquer som.
Quando chegou a vez do Francisco a fila parou e um silencio se fez, as mãos ainda abaixadas a olhar o amigo que já não sentia a dor.
O carrasco gritou que ele não passava de um covarde, ele balança a cabeça negativamente e, para o espanto de todos, empurra o Bambuzinho e assume o lugar dele e, isso, nenhum covarde faria.
Contrariado na sua autoridade, o Alcides suspende a sessão de tortura e chama-o pra dentro.
Grita, ameaça e o chama de covarde e o Francisco não fala nada, só discorda com o seu balançar de cabeça, vendo que o marido está perdendo a razão, a esposa dona Maria entra na conversa e, sem qualquer aviso acerta um tapa no rosto e, ainda que lhe deixasse tonto pela surpresa, o garoto não chora.
_Ficou sem café da manhã por uma semana, esse foi o castigo.
Arrematou o Claudinho e, ao fim da narrativa, seus olhos brilhavam de orgulho, enquanto os ouvintes aplaudiam.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Honra teu pai.




Eu não conheci a escolha, nasci corintiano.
Meu pai, me deu o nome dele, mas me chamava de Baltazar (o cabecinha de ouro) e, como ele era ligado à escola de samba, na minha primeira infância, eu só conhecia corintianos e sambistas.
   Como eram todos fanáticos, eu tive dificuldades, pra entender que o clube estava em jejum de títulos, como explicar essa coisa??de ter alegria sem títulos.
   Eu já morava num orfanato, longe do meu pai, não sabia de nada de mim, só sabia que torcia pro timão, torcer, foi a primeira forma de eu me identificar no mundo, antes de me alfabetizar, de ter uma religião, eu só era corintiano.
Em 1976, o meu time disputou o memorável jogo com o Fluminense, foi pros pênaltis e Tobias, que antes de embarcar pro Rio, foi rezar no pé da santinha da capela do nosso colégio, defendeu. O Zé Maria, que foi junto, ficou jogando bola com os meninos, na quadra, na hora do almoço o Brandão perguntou quem de nós, torcia para o Corinthians, todos responderam em coral.
A partida foi chamada de INVASÃO do MARACANÃ e ao fim do jogo, que foi transmitido pela televisão, assistimos, todos no salão, por incrível que pareça, todas as freiras eram Corinthians, lembro que uma delas, gritou um palavrão na hora do gol de empate, convertido pelo Russo. No fim da partida, saímos para a avenida Nazaré, bem em frente do colégio, para comemorar a vitória, a impressão que dava era que todo mundo torcia para o TIMÃO. Depois, fui descobrir que não era todo mundo...só 7 entre 10, quase todo mundo.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A araucária


Um bom observador perceberia que o Educandário Dom Duarte era uma gigantesca obra de engenharia, num tempo remoto, fora erguida uma verdadeira cidade.
A estrada que se seguia do pavilhão 11 era de terra vermelha, milhões de carradas de terra foram despejadas e, se seguia até o cenáculo, para conter essa terra toda, outra quantidade de árvores foram plantadas no lado esquerdo, uma grande depressão precipitava-se no lado esquerdo e levava à parte mais baixa.
Na parte mais baixa ficavam a olaria e os lagos, essa parte do terreno era original da região, dali o seu Paulo tratorista retirava um solo de argila, matéria prima dos tijolos fabricados.
Atrás do pavilhão 11 haviam um canavial e um milharal, essas culturas não tem raízes fortes o suficiente para conter a terra, em épocas de muita chuva, era comum os desbarrancamentos, a parte desse barranco seguia num ângulo aproximado de uns 45 graus, até chegar ao pavilhão 14 haviam duas curvas leves e o barranco era coberto de abacateiros, um largo espaço para um mandiocal e uma longa área de pinheiros que, em dias de chuva de vento, cantavam uma triste melodia.
Abaixo da curva que a estrada desenhava, ficava o bosque do 14, em formato de semicírculo e com uma paineira de entrada, tinha sombra o dia inteiro, a única parte em que os meninos não reclamavam de capinar.
Não creio que ela tenha sido plantada ali de propósito, creio que alguém deve ter feito uma experiência e, por sorte, deu certo.
Digo isso, porque ela se encontrava na metade do barranco, dificilmente alguém plantaria uma árvore que cresce 40 metros, na metade de um barranco.
Os galhos crescem em forma de chapéu, a sombra generosa garantia a ausência de capim, embaixo dela, se podia ver parte das costas do pavilhão e grande parte da estrada, bem como o campo à direita e, as ondas que o capim gordura fazia ao vento.
Para saborear uma boa leitura, a coisa que eu mais amava fazer, tinha que me esconder dos amigos, esse era o meu melhor lugar no mundo, embaixo dela, aprendi todo o sentido da vida, a paz que a araucária me dava, me ligava ao mundo e, me tirava dele para viver as coisas do Lins, do Montello, do Jorge e do Machado.
Num dos galhos havia uma coisa pendurada e, eu supunha que fosse um cacho gigante de marimbondos, não me assustava, pois, ele estava a uns vinte metros de altura.
Eu lia “Memórias póstumas de Brás Cubas” e ia forte na leitura, não ria, sabia que aquela grota poderia reverberar o som e, meus amigos me descobririam.
Terminei a leitura, fechei o livro com calma, coloquei-o na barriga, encostei a cabeça no monte de folhas de pinheiros e senti o cheiro agradável que as folhas jogavam no ar, acomodei-me e dormi.
Acordei súbito ao ouvir um barulho semelhante ao de uma bomba que me foi arremessada, frações de segundos e o zumbido terminou numa grande explosão.
Aquilo não era cacho de marimbondos e sim, um enorme cacho de pinhões, caíram ao lado da minha cabeça e se espalharam no chão, fui tomado de uma felicidade sem igual, acabara de descobrir que a araucária dava frutos, enquanto enchia os bolsos pensava em chamar o sexteto e anunciar a descoberta e... não precisei... eles já haviam ouvido o barulho e já estavam recolhendo os pinhões.
Pela tarde, haveria fogueira e banquete.