segunda-feira, 24 de abril de 2017

Sem final feliz.


Quem acompanha as minhas narrativas, vai logo identificar o Valdevino como um bom amigo, em quatro, ou mais postagem ele aparece em primeiro plano, deveras.
Foi um amigo mais velho que eu admirava e acabou virando um amigo do peito.
Também notará o leitor que, em várias aventuras o Lourival dá o ar de sua graça, cito a postagem "Rebola Sebastião, rebola" e outras.
Os dois moravam no pavilhão 12, a história dos dois era parecida com a história de muitos dos meninos que foram abandonados e conduzidos ao Instituto Sampaio Viana, de lá seguiram uma triagem em alguma das várias dependências da FEBEM e posteriormente mandados ao Educandário Dom Duarte, em tempos distintos, feito a história de milhares de crianças.
O Valdevino tinha uns três anos a mais da minha idade e o Lourival, uns meses mais novo que eu.
Ao primeiro, Deus deu o dom da habilidade nos esportes, ao segundo coube à fidelidade e não se apartavam nunca, os dois.
O Lourival era para o Valdevino uma espécie de Sancho Pança, um cavalariço fiel, qualquer um que os via, tinha a certeza que aquela amizade vinha de outras encarnações.
Juntos no Educa, viveram suas vidas e cresceram, como manda a natureza humana, cada qual com seus jeitos e modos.
Em épocas de saída, já adultos, foram pras suas vidas, cada qual pro seu lado.
O Lourival formou-se e constituiu família e bateu-lhe a curiosidade de saber da própria história, de posse de seus documentos procedeu a uma investigação por conta própria.
Descobriu que a mulher que o havia deixado aos cuidados do Sampaio Viana, já havia feito a mesma coisa anos antes, vasculhou tudo e descobriu que o seu melhor amigo do colégio era, na verdade, seu irmão mais velho.
Porém, já se fazia tarde demais, por esses tempos o Valdevino já havia perdido a alma e dependente das drogas, havia virado um andarilho no centro de São Paulo, meses depois partiu dessa vida.

sábado, 22 de abril de 2017

Amigos para sempre.




Essa é, como todas as outras, biográfica, no entanto ela transcende o limite do tempo, pois, começa no ano de 1980 e termina em 2007, portanto 27 depois.
Nunca, em tempo algum, tive amigos feito os que tive no lar 14 do Educandário Dom Duarte.
  Claro que, no decorrer da minha vida tive umas centenas de amigos, tenho a natureza de fazer amigos com facilidade, mas igual aqueles, nunca mais.
  E então, ao final daquela partida contra o 13, em 1980, foi como se houvessem retirado a cereja do nosso bolo, simbolicamente, aquele título selaria com chave de ouro a vida daqueles meninos.
  Se aquele dia marcou o apogeu daquela turma, também marcou o início do fim de uma era, aos poucos, os amigos foram saindo do Educa e, aquela turma foi diminuindo, até restar só eu.
  Nos caprichos da vida, ingressei na carreira do esporte e, uma dúvida cresceu dentro de mim: Será que se eu estivesse do lado de fora do campo, a nossa sorte teria sido melhor???
  Como saber disso com certeza? Só se existisse uma máquina do tempo e, a gente poderia voltar no tempo, para resolver aquilo tudo.
  Mas, pode o leitor confiar em mim, sem usar os milagres da tecnologia, eu consertei tudo.
  Nunca escondi que a minha escalada esportiva se deveu aos ensinamentos que tive no Educa, sentado na escada do campão, apaixonado pelo futebol do Grêmio Educandário, fui aprendendo os segredos do esporte, tendo mestres como os professores Aguirre, Pazzeli e Claudinei, me destaquei e escrevi a minha trajetória como treinador...num sentido mais amplo, tudo o que ensinei aos meus alunos, aprendi no Educa.
  Em 2007 haveria a terceira edição do Cingabol, uma competição com 24 equipes de conjuntos habitacionais das periferias de São Paulo e, me veio uma ideia à cabeça:
  Que tal tirar aquela velha dúvida???
  E, tendo um time com 3 anos de treino, decidi remontar aquele time do 14, ao meu filho caberia o meu papel, os outros jogadores do Dínamo seriam os outros internos, meus grandes amigos.
  Já que a tática do nosso time antigo foi criada mesmo por mim, era ela mesmo que eu usaria.
  Não precisou de muito esforço, o time do meu filho tinha um nível de amizade que se aproximava exatamente ao que tínhamos, eu e os moleques do 14.
  Um pouco antes de começar o campeonato, numa partida amistosa, a bola não estava em jogo, o trio de meio campo ficou a conversar e, eu sabia que não estavam falando nada a respeito do jogo, por uns instantes eu pude ver uma cena do passado, eu, o Viana e o Feliz, descontraídos, falando besteiras.
  Uma coisa só, era diferente nesse time, diferente de mim, que era esforçado, meu filho era craque.
  E, eu tinha mesmo razão, do lado de fora, pude consertar todas as falhas do time.
27 anos mais tarde, meu filho, com 12 anos de idade, ergueu o troféu de campeão invicto, para lavar a alma dos meninos do pavilhão 14.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

O orgulho do Educandário Dom Duarte

Nos tempos de adolescente no E.D.D, somente três coisas davam status pros pivetes como eu:
Sair com uma mina show, jogar no dente de leite do Grêmione tocar na banda...não, necessariamente nessa ordem.
A primeira eu estava engatinhando, mais cedo ou mais tarde ia rolar, a segunda foi difícil, mas eu, o Viana e o Feliz conseguimos e fomos babando, juntos, pra fanfarra.
Pegamos uma época de declínio, muitos dos feras já haviam saído e o comando estava sendo trocado, nem fazíamos que estávamos participando do capitulo final, os últimos acordes do orgulho do Educandário Dom Duarte.
O Feliz e o Viana, que já tinham uma habilidade musical se sentiram à vontade, um pegou a caixa e o outro pegou um surdão...e eu ???

  Me jogaram uma marimba nos braços e, quando me perguntavam que instrumento eu tocava, na maior, eu respondia:
_De tudo um pouco.
O Zé Almir já era veterano, tocava o bumbo, ensaiava do meu lado, fazia uma graças com as baquetas, rodava-as nas mãos e batia...Ah que inveja do Zé !!!.

  Geralmente ele era desajeitado, engraçado até, mas ali era senhor de si, e eu com a minha marimba.
A fanfarra ficou sem comando, o João Beline, que era marido da professora Íris e pai da Ilka, minha amiga, se ofereceu pra comandar.
Se dava status pros meninos, imagine como era prum adulto, comandar a maior e melhor fanfarra de São Paulo, não deu outra, o seu joão ficou insuportável, com ares de muito importante.
O Francelino tocava o trompete, um passo na minha frente, de quando em vez desafinava, mas, quase não dava pra perceber.
O Zé fazia seu habitual malabarismo, o Francelino deu uma nota errada e eu na minha marimba esperando a minha hora, o chefe da fanfarra se aproxima e fica do meu lado, de ouvidos atentos, o Francelino dá uns acordes perfeitos, o Zé castiga o bumbo e o faz de olhos fechados, o trompete desafina só um pouquinho, o seu João tem dúvidas e chega mais perto, minha vez de tocar a marimba...tim, tim, dom, o chefe gostou e sorriu pra mim, aproximou-se do Francelino, não ia perder o próximo acorde do trompete, ao fazer isso fica muito perto do bumbo, inclina a cabeça, esperando o Francelino soprar...
Antes mesmo que o Francelino tocasse, a baqueta pesada o atinge em cheio no nariz, pulei pra trás, no espaço que eu deixei cai o corpo do chefe da fanfarra...nocauteado, feito um lutador de boxe.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

O plano B


Um dos amigos, ao qual eu tinha mais consideração, era o Zilmo.Já da Casa da Infância nos dávamos bem e, no Educandário Dom Duarte nos separamos, ele foi morar no lar 13 e, quem é do meu tempo vai lembrar dele, pois o nome é bastante incomum, se não lembrar por isso, ão de lembrar que ele tinha, vez em quando, ataques epiléticos.
Duravam, esses ataques, coisa de uns poucos minutos e, me lembro que, quando eles acabavam, o amigo se sentia humilhado, além da falta total de controle da situação, chamava a atenção de todos e com isso, sempre vinha o coitadismo por parte de quem não o conhecia.
Fora esse detalhe, o Zilmo era igual a todos os índios do Educa, fazia as mesmas coisas e ainda defendia o gol do pavilhão 13.
Sempre ficávamos conversando de frente do teatro, quando não estávamos perseguindo o lagarto do bambuzal, ou perto do lago da piscina e, como ele era besta feito eu, tínhamos assuntos de sobra e nos chamávamos de "A dupla café com leite".
Fora dos limites territoriais que pertenciam aos pavilhões, sobrava uma grande faixa de terra ao Educandário Dom Duarte, essa área tinha que ser zelada, quer dizer carpida e limpa.
O grupo encarregado dessa limpeza era chamado de "Força Tarefa", nessa empreitada eram chamados os internos, de todos os pavilhões e o comando ficava à cargo do irmão Wilson, que, além de ser o enfermeiro do colégio, era o chefe da banda.
O verdadeiro exército de meninos com enxadas às costas parou em frente ao cenáculo, eram 7 horas da manhã, uma névoa de madrugada ainda podia ser vista na difusão dos raios matinais, no meio de todos os meninos estávamos eu e o Zilmo.
Descemos em fila até o sopé do barranco e marcamos nosso eito, um ao lado do outro, à medida que as enxadas batiam no chão, uma fina poeira subia do capim gordura e impregnava o ar.
O sol já se punha alto, o calor aumentava e o metal da enxada batia num compasso fúnebre, uma batida no chão, uma arrastada na terra e uma fração de silencio e recomeçava tudo de novo.
O suor escorria da minha testa, olhei pro Zilmo e, branco que ele era, estava vermelho e ria.
_Tá rindo do que, moleque?
_É hora do plano B.
_Tá falando do que?
Não disse mais nada, tirou o Kichute dos pés e os pôs de lado, juntou um monte de mato carpido, como quem prepara uma cama.
Puxou a respiração e deu um grito sinistro e caiu ao chão, se contorcendo como se estivesse tendo um ataque, a maioria dos meninos não sabiam como lidar com aquilo, só eu fui socorrê-lo.
Em coisa de poucos segundos, o bolo já havia se formado em nossa volta e o irmão Wilson se lamentava por não ter trazido a caixinha de primeiros socorros.
Depois que o Zilmo voltou a consciência, me foi dada a ordem para levá-lo de volta ao seu pavilhão, saímos do grupo, ele capengando e apoiado no meu ombro, quando dobramos a estrada do 14 nos ajeitamos e rimos à valer, passamos o resto do dia empinando pipa no barranco do 17.

35 anos de casamento.


Mas, não foram ininterruptos, esses 35 anos.Houve um intervalo em que eu e a Angela Camargo Victorino estivemos separados.
Num belo dia eu cheguei transtornado em casa, os meninos ainda pequenos, meti o pé na porta e gritei:
_Mulher, estou cansado dessa vida, quero a minha liberdade.
E fui decidido, peguei o meu apito, minha camiseta de São Jorge e, o resto que ficasse pra ela e, pisando firme, saí porta afora.
Ela me viu sair e não disse nada...Ah, se ela dissesse.
Esse longo período durou exatos 15 minutos, bati na porta, que não havia levado a chave.
Só me sorriu, um riso irônico.
_Fia, hoje tem jogo do Timão na televisão.
_Seja bem-vindo de volta, depois do jogo lave a louça.
_Eu gostei foi do romantismo.
_O quê??
_Nada.


quarta-feira, 19 de abril de 2017

Memórias de um dinossauro.


Em 1991, meti uma firma no pau e tirei uma bolada, dinheirinho bom de verdade.
Meu amigo Outrossim, olha bem o nome da criatura, sabendo do acontecido, ofereceu os seus préstimos como consultor de negócios.
Disse que eu devia pegar todo o montante e investir em ações da companhia telefônica, ele mesmo já havia convertido tudo o que havia economizado nessas tais ações.
Fiquei mesmo tentado, por essa época o aparelho celular era delírio de ficção científica e uma linha telefônica tinha o preço de uma boa casa, num bairro nobre.
Mas, como é da minha natureza, amarelei e torrei a grana toda sem arrependimentos.
Eu tenho um telefone fixo que toca uma vez por semana e, mesmo assim é engano ou cobrança.
O amigo nunca mais vi e, sempre que vejo um mendigo na rua, tenho a impressão de que vou encontrá-lo.

A canção perfeita

  As pessoas costumam dizer que, tem música que conta história... eu vou mais longe, todo momento que eu vivi, tem uma música para lembrar, minha memória e a música caminham juntas, a música é o combustível que ativa as minhas lembranças.
  Em 1977, quando fui trabalhar na administração do Educandário Dom Duarte, com o seu Tinoco, pensei que estava sendo punido, não que eu não merecesse castigo, mas, quem imagina que um guri de 12 anos, vá se entender com um senhor, com mais de 80 primaveras, ranzinza e caladão.
  No começo, havia só o silêncio, silêncio propriamente não, arrastava-se no ar aquela música que vinha do rádio dele, uma música marcial, aqueles acordes inflexíveis, aquela coisa monótona e repetitiva, muitas vezes, ele percebia que eu fechava os olhos na minha cadeira, dava um forte tapa na mesa e, eu acordava assustado, ele sorria feito uma criança, que acabou de cometer uma travessura.
  O ajudante do seu Tinoco, diferente dos ajudantes do seu Reginaldo e do seu Alones, não saía para entregar bilhetes ou comprar alguma coisa, portanto, eu tinha que ficar ali, naquela guerra de gerações, Todos os prédios do Educandários datam de 1930, a sala do seu Tinoco parecia ser vitoriana, lá fora, os outros meninos escutavam The Commodores e Guilherme Arantes, lá dentro, a trilha sonora era, supunha eu, a de um campo de concentração.
  Na sala, haviam, além das fotos antigas, troféus enormes, de um tempo de glória da fanfarra e do futebol Educandariano, a minha curiosidade fez com que ele se abrisse e, do baú aberto, havia uma riqueza de detalhes, datas e acontecimentos, aquele velho mal-humorado era um narrador apaixonado, conhecia todas as histórias que os troféus não mostravam.
  Viciado em leitura, naquele tempo, não abri um livro, toda cultura que adquiri, foi via oral, minha mente viajava, as histórias eram dum tempo duro, nossa!.... Se no meu tempo era duro ser interno, imagina no tempo dele, onde reinava uma disciplina militar e os internos eram tratados como prisioneiros.      Aquilo foi tão bom para mim, que anos depois, fui entrevistar um velho combatente da revolução de 32, como trabalho de estudos sociais, o pracinha ficou impressionado com o meu conhecimento de causa que quis me adotar.
  Ainda assim, a música continuava a mesma, certo dia, faltando poucos minutos para o meio dia, entrei na questão:
  _Seu Tinoco, essa sua música faz pensar em suicídio, eu até que gosto de clássicos, mas convenhamos... Vagner é de lascar.
    _. Ué, eu gosto de Vagner, disse isso e sorriu, um sorriso desafiador.
  _O Hitler também gostava e isso não fez dele um ser humano lindo.
  _E. o que o "programador" sugere ???_disse ele, ainda rindo.
  _Poe aí, umas músicas de negão, falei isso, mas, já estava saindo da sala e ganhado a garagem, ele saiu até o corredor e gritou:
    _. Amanhã, vou te mostrar o que é música.
  No dia seguinte, ele tinha, em cima da mesa, uma vitrola antiga com um disco de 78 rotações, na capa do disco, que estava em cima da mesa, um nome:
  Scott Joplin, confesso que isso não me impressionou nenhum pouco, o velho segurava o braço da agulha e com um ar misterioso, começou a narrar:
    _. Imagine um mundo, um mundo sem jazz, só havia as polcas e as valsas...
  Conforme ia contando a história, crescia e descia o tom da voz, conforme a emoção, contou que os negros, nos barcos que navegavam o rio Mississippi, aprenderam a tocar piano, olhando os brancos, mas, aprenderam do seu modo, usando a parte preta das teclas, isso deu um som diferente de tudo o que era conhecido e, muito mais rápido no seu passo, servia mesmo para dançar, essa música, foi dado o nome de Ragtime e, só então, soltou a agulha no disco.
  O som que ecoou na sala, me conduziu direto ao começo do século XX e a música era conhecida, aquelas músicas incidentais do cinema mudo.
  É claro que fiquei encantado, a evolução da música foi mostrada, cada dia um disco diferente e nem se eu tivesse um curso intensivo, eu teria um professor deste gabarito.
  Blues, Jazz, isso, no entender dele, era música de negão e ele conhecia tudo, de Glenn Miller à Sinatra, de Cole Porter à Nat King Cole, mas tinha uma paixão especial por Billie Holiday.
  Quando falava dela, seus olhos brilhavam, sabia tudo sobre ela, suas músicas e sua vida, todos os dias, ele trazia um disco de Jazz ou Blues e no final, sempre executava um da Billie.
  Minha canção preferida sempre foi Blue Moon, quer dizer, a canção preferida dele, virou a minha.
   Então juntos, chegamos à conclusão que a música perfeita seria ela e, na voz da Billie.
  Na minha vida, conheci muitos amantes de Jazz, desses, oito entre 10, eram apaixonados pela Billie... aos poucos, eu me tornei um deles.
  Anos mais tarde, eu já trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, passeava para os lados do Metrô São Bento, quando ouvi a Billie interpretando. Estrange frut., jurei para mim que ia comprar esse disco, entrei na loja e havia um senhor sentado, ouvia a música com os olhos fechados, tinha uma coleção dos discos dela, passei em revista, disco por disco e, no meio de todos eles, achei um que me assombrou, peguei-o e levei para o vendedor:
  _A Billie gravou Blue Moon mesmo?
  Ele acenou com a cabeça que sim, não acreditei e pedi que ele a executasse na vitrola, ele obedeceu, quase chorei de emoção, comprei o disco.
  No dia seguinte, fui para o pavilhão 11, que agora estava convertido em asilo, o seu Tinoco sorriu a me ver adulto, quando lhe entreguei o disco, seus olhos brilharam e gaguejando disse:
  _A canção perfeita.
  Essa foi à última vez que vi meu velho amigo de infância.