segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu melhor amigo (Parte terceira)




  Como eu disse, fazíamos parte de uma mesma moeda, diferentes, mas sem antagonismos e tínhamos assuntos pra toda hora, muitas vezes, em hora de repouso, ficávamos com a toalha de mão nos rostos, fazendo que dormíamos e continuávamos cochichando, posto que éramos vizinhos de cama.
  Algumas vezes virávamos um trio, quando batíamos nas latas penduradas na tela que dividia os pátios, fazíamos o som e o André cantava os sambas mais lindos desse mundo.
  Em sala de aula, desde o jardim de infância, nossa companheira era a Marta Yoshie, até que tentaram nos separar dela, mas ela ficou muito triste, a ponto do pai dela implorar que nos deixassem juntos, era um trio estranho aquele, numa sexta-feira, ao final da aula, o pai dela nos levou pra um passeio, ela ia completar oito anos no domingo, passamos esses dias na casa dela e ainda que fosse no Cambuci, era uma réplica das casas do Japão, com jardins, lagos, cascatas e santuários.
  Avisados com antecedência, os convidados trouxeram presentes para a aniversariante e para os amiguinhos dela que, coincidentemente, aniversariavam na mesma semana.
  Mas, via de regra, desde quando chegamos, não nos apartamos mais e a dupla era chamada pelo nome e o sobrenome, geralmente quem aprontava era ele, mas eu era o maior, meu nome vinha em primeiro, na hora do grito:
_NILTON E FERNANDINHO !!!!! e, lá vinha o castigo, metade pra cada.
  Eu não tinha visitas, a mãe dele trazia "bode" pra dois, no caso de recomendações, ela fazia pra mim, pois sabia que ele fatalmente esqueceria.
  Um dia, com a desculpa de resgatar uma bola, subimos naquela lage que tem, entre a sala de aula e o pátio, como a moça, estava ocupada com os outros meninos se distraiu, fomos andando, voltando os pátios agachados, chegamos ao Menino Jesus, havia ali duas linhas de arames farpados, com facilidade pulamos pra rua, fizemos a volta no quarteirão e chegamos na portaria.
  Todo mundo foi chamado, a Olga foi acusada de ser negligente e se defendia, de canto de olhos dava pra sentir que ela queria nos esganar, a madre Márcia queria o pescoço de alguém, menos os nossos, a madre Da Glória já nos havia presenteado com seus famosos beliscões, os meninos foram trazidos pela Olga e nos olhavam com olhos de cumplicidade e admiração e, com certa pena, já que se falava-se em desinternação ou transferência de colégio.
  De cabeças baixas, esperamos e torcemos por um milagre, de frente pro Fernandinho, pude ver que, acima dos ombros dele, a rampa estava iluminada de sol, um vento fazia o véu da madre Brasil esvoaçar e, não tive mais medo de nada, ela entrou no saguão e o saguão se iluminou, em vezes, dava a impressão que ela sempre andava acompanhada de um batalhão de anjos.
  Caminhou em nossa direção, ficou no meio de nós e pousou as mãos em nossas cabeças e, com a naturalidade de quem educa disse:
_É logico que eles ultrapassaram os limites, mas voltaram.
  Se pularam é porquê estava fácil, se fossem outros meninos poderia acontecer o pior.
 E, resolveu tudo, o Juventino consertou a falha na segurança e, isso não evitou o castigo, ficamos sem ir ao Zoológico.
  Mas, quem disse que a dupla, sozinha, não se divertiu na Casa de Infância vazia???

Meu melhor amigo (Parte segunda)


  Uma grande amizade começa sempre sem ser forçada, ela é imposta pela ocasião e vai crescendo, para nunca mais morrer.  Já havia completado 2 anos, desde a tragédia que se abatera na minha família, havia sido transferido do Instituto Sampaio Viana para essa nova casa, com o tempo, peguei o habito de chamar orfanato de casa e, convenientemente, esse lar tinha o nome de Casa da Infância.  Era 1970 e, eu completaria 4 anos de vida, a vida já tinha me mostrado o pior das tempestades e eu havia sobrevivido à ela, no começo eu tinha me debatido, deixado a tristeza ganhar e, vi que isso me afogava mais e mais.
  Num determinado ponto, como um naufrago, submergi à superfície, respirei e senti o ar de lá e gostei, resolvi boiar na água e deixar a correnteza me levar.
  Enquanto esperava na portaria as pessoas resolverem a papelada da internação, uma freira passou no corredor e me viu, ajoelhou-se na minha frente e percebendo a minha aflição, sem mais nem menos, abraçou-me, levantando-me da cadeira.
  Lá em cima, suspenso nos braços dela, como quem já havia se esquecido do carinho, senti a paz que há muito tempo não sentira mais, encostei a cabeça do ombro dela e chorei...Agora, com 50 anos, lembrei-me do momento e as lagrimas voltaram.
  Momentos depois, já afeito do momento, olho para o grande saguão e vejo a claridade do ambiente, muito diferente do lugar de onde eu vinha, no escritório, a madre da Glória ainda discutia a minha internação, a madre Brasil havia se sentado ao meu lado e segurava a minha mão, a manhã jogava um sol no meio do saguão, através da grande porta de vidros.
  Essa mesma porta é aberta pela moça da recepção, aparecem duas figuras, uma senhora com jeito de sofrida e seu filho que, sabendo que ia ficar só, chorava.
  A madre Brasil levantou-se, mas, não largou a minha mão e fomos assim, encontrar os recém chegados, ainda segurando a minha mão, ajoelhou-se diante do guri, que era mais baixo que eu, pôs-se a acalma-lo e disse que ele teria vários amigos, apontou pra mim e disse que eu seria o primeiro.
  Olhamo-nos e eu estendi-lhe a mão, ele retribuiu, ainda soluçava.
  Daí para frente, quem via um, procurava o outro...a gente parafraseava os "Originais do Samba", denominava-nos de... a corda e a caçamba, as freiras e as moças preferiam nos chamar de dupla diabólica.
  Num passeio à Serra da Mantiqueira, subimos numa arvore e nos perdemos do resto do grupo, era noite fechada, quando os bombeiros nos acharam eles estranharam a nossa tranquilidade diante do perigo, acabou que, passamos a noite no batalhão e voltamos no dia seguinte como heróis.
  Diferentes em tudo, eu era introspectivo e ele era solto e, é claro, que a habilidade no esporte veio primeiro pra ele, o Fernandinho era um malabarista da bola, isso lhe dava o direito de escolher o time, a primeira escolha era sempre eu.
  Fomos fazer um jogo de amizade, que em toda época do aniversário do colégio Catarina Labouré, a Casa da Infância era o convidado.
  E, era sempre a mesma história, tendo o colégio anfitrião meninos mais velhos, a derrota era certa sempre, participávamos do jogo por participar e íamos pro resto da festa, ou seja, muita comida e doces.
  Nessa ocasião a coisa mudou, quando fazíamos as filas pra os comprimentos habituais, um dos meninos do Catarina passou do lado do Fernandinho e sorriu da pequena estatura dele, ao fazê-lo, passou a mão em sua cabeça, como se afagasse um bebê.
  Ah, o macaquinho virou o cão na quadra, o menino grande tomou a bola entre as pernas seis vezes seguidas, a cada uma delas a torcida das meninas gritava Olé.
  Não restou outra alternativa, a não ser sair de quadra chorando, nesse instante já se configurava a nossa vitória, a madre Dolores, constrangida, queria consertar as coisas, já que o Fernandinho, continuava arrasador, fazia gols e olhava desafiador para o banco de reservas.
  Tirou o Sebastião do gol e deu a camisa de goleiro ao Fernandinho e, aí ficou bem pior, o macaquinho fechou o gol.
Era uma aliança selada, sem protagonismos, dois guris tentando ser felizes num mundo governado por pessoas tristes, aprendi as letras primeiro e as ensinei para ele, sempre que eu queria calma para ler, vinha ele brincar, quando eu conseguia ler, tinha que contar para ele a minha impressão e, por conta disso, virei contador de histórias.

Meu melhor amigo. (Parte primeira)


  . Quando cheguei à Casa de Infância do Menino Jesus, em 1970, tinha 4 anos de idade e, antes, passei um ano no Instituto Sampaio Viana, meu irmão fora deixado numa maternidade, pois era ainda de colo.
  Da copa de 70 me lembro pouco, passei o ano todo aborrecendo as freiras para que elas dessem conta de trazer o meu irmão.
  . Numa tarde, a madre Brasil me levou para a portaria, dizendo que a partir daquela data ela iria poder dormir tranquila, na portaria estava o meu irmãozinho, que nem idade tinha para estar lá, acabou virando o xodó das freiras e das moças.
  Hoje eu sei que, se não fosse isso, ele teria sido adotado por alguma família, provavelmente jamais nos veríamos de novo.
  Mas, nesse primeiro ano conheci o Fernandinho, que tinha o apelido de macaquinho e, em termos de natureza, era o oposto de mim.
  De pequena estatura, tinha mesmo a habilidade de um primata, subia na tela do pátio e pulava pro lado dos mais velhos, provocava uma briga e voltava rindo, antes mesmo que as moças se dessem conta do que havia acontecido.
  Eu era retraído e contemplativo, sentava na beira da alvenaria da piscina e ficava olhando os meninos brincando na gaiola, logo vinha o amigo com duas espadas feitas de jornal na mão e dizia:
_Essa é a sua, vamos tirar os piratas do nosso navio.
  Cruzávamos as espadas e corríamos em direção à gaiola, digo, navio...e assim, começava mais uma guerra.
  Por sermos tão amigos, juntos, formávamos uma pessoa só, na hora das broncas os nomes vinham sempre juntos, como se Nilton e Fernandinho fossem nome e sobrenome de uma pessoa.
  Nas horas de recreio, quando o recreio era na quadra, assim que a Cinira se distraia, subíamos na seringueira e sentávamos em seus longos galhos, olhando a avenida Nazareth, ficávamos apreciando os carros que passavam:
_O vermelho é meu, o azul é seu...e, se o carro fosse um DKV, era sempre do outro.
  Ficávamos ali por muito tempo mas, assim que a moça percebia a nossa ausência, vinha pro pé da árvore e passava a gritar o nome e sobrenome e o castigo era certo.
  Sempre dividíamos os castigos, numa tarde de inverno, para que a paz reinasse entre os meninos, a Margarida nos deixou de castigo naquela salinha que ficava no canto esquerdo da quadra e trancou a porta, passamos pela janela e, descobrimos que ela dava no fundo do teatro, exatamente embaixo do palco.
  Todas as roupas, as fantasias e instrumentos usados nas peças faziam daquele canto mal iluminado um país de sonho, depois disso, fazíamos sempre bagunça à espera do castigo.
  Além dos castigos, dividíamos as cintadas e, é claro que, não podia ser diferente, sempre que um via o outro chorando, desandava a rir.
  Um dia a Olga resolveu nos repreender no lavatório, levantou o chinelo e partiu em nossa direção, com largo espaço, cada um correu numa direção, batia na parede e voltava na direção oposta, a Olga corria para um lado e, não conseguia pegar e partia para outro.
  Com o chinelo levantado, tentava alcançar os meninos e nada...os outros meninos viam tudo da porta do dormitório e riam muito.
  A Olga que era muito branca ficou vermelha e arfava de cansada, os meninos continuavam a correr e a pular com o apoio da torcida, a Olga se deixou cair no chão e gritou:
_. Vão embora, suas pestes.
  . Na festa de São João, fizeram do mastro da bandeira da quadra, o pau de sebo.
Se subir numa árvore já é difícil, imagine subir num ferro besuntado, na ponta havia um enorme saco plástico cheio de brinquedo e milhares de doces.
  Eu nem tentei, os adultos e as crianças se revezavam na tentativa, perguntei para o Fernandinho se ele não ia tentar, ele deu de ombros e disse que depois iria, sem pressa.
  Como tínhamos tíquetes pra gastar na festa, fomos comer e brincar nas barracas, de quando em quando uma pessoa se arriscava a subir e o mesmo resultado...nada.
Assim que se acabaram os tíquetes o Fernandinho me disse:
_Vá e fique na gruta.
   Disse isso e partiu na direção do pau de sebo, assim que todos viram que ele iria tentar subir, fizeram um cordão humano em volta, eu que já sabia o que ia acontecer, fiquei fora do cordão e rindo, por antecipação.
  O Fernandinho pegou um saco de estopa e amarrou-o na cintura, com a habilidade que justificava o apelido, subiu num lance só, lá em cima pegou o enorme saco e o segurou no ombro, com a outra mão soltou a estopa e a jogou nas penas, pra que o sebo não as sujasse, escorregou.
  Ao chegar no chão, viu que todos o rodeavam, todo mundo queria um pedaço da glória, correu, todos o seguiram em direção à lavanderia, quando todos chegaram na porta de vidro, iniciou uma corrida na direção oposta, rumo à rampa da portaria, na entrada da portaria jogou o saco no jardim e se jogou, quando as crianças que o seguiam não o viram subiram a rampa que levava ao refeitório, cá embaixo nós nos acabamos nas guloseimas e dividimos os brinquedos.