domingo, 18 de junho de 2017

A cobra da estrada



   A copa de 1978, aquela que fomos garfados pela Argentina, assistimos na sala do pavilhão 14, aquele ano fez muito frio, o chão quadriculado de marrom e bege deixou marcas em nossos traseiros. Os jogos foram disputados à noite, então corríamos da escola para chegar em tempo de não perder um minuto de jogo, lembro que o Mathiole e o Dalcides discutiram no recreio e chegaram mesmo a ficar beiço a beiço, numa atitude de vias de fato, o padre Paulo chegou e separou-os, agarrado pela turma do deixa disso, o Dalcides gritou em tom ameaçador:
  _8 e 15.
  Isso, equivalia à uma marcação de briga na hora da saída, posto que, o fim do horário das aulas se dava nesse exato horário, nos corredores começou o alarido, conversas e expectativas por conta da tal briga.
  O grande problema é que... era quinta-feira, logo mais o Brasil iria enfrentar a Áustria.
  É lógico que, quando o sinal das 08h15min bateu, todos correram, para os seus pavilhões e, nem se deram conta da briga marcada.
  O fato é que o Dalcides e o Mathiole nunca brigaram e ninguém mais tocou nesse assunto.
  Ruim mesmo, era ser criança e ter que aguentar, durante o jogo, as sandices do Seu Odilon.
  Na cabeça dele, a culpa toda foi do goleiro Leão.
  Quando o guarda metas da seleção fazia uma defesa, ele gritava:
    _Esse Lião é muito macho.
  Quando ele tomava gols, o grito era outro:
    _Esse Lião é um méida.
    A culpa mesmo eu colocava no Claudio Coutinho, o técnico, que bateu o pé e não levou o Falcão.
  Nos dias seguintes tinha uma narrativa diferenciada do jogo, ela era feita pelo Lucídio, um neguinho que gostava de contar histórias e interpretar aventuras, usava uns sapatos de bico fino e calças pula brejo, sua figura lembrava o personagem do Al Jolson no filme "O cantor de Jazz", com uma diferença, o ator se pintava e o Lucídio era daquela cor mesmo.
  Sempre que o neguinho se apresentava todo mundo parava, ele fazia vozes diferentes, quatro ou cinco vozes, que conversavam entre si... um show mesmo, ele jurava que iria trabalhar na televisão.
  O preferido de todos era o Carlitos do Chaplin, fazia isso com propriedade e por força do hábito e, devido à um problema físico, andava sempre com elas fechadas e quase não conseguia dobra-las.
  Por conta disso, não podia ser utilizado no eito, não dava conta de carpir por muito tempo e, como esse era o castigo predileto do Seu Odilon, ele se vingou.
  Para indignação de todos, foi mandado a trabalhar na olaria, onde eu trabalhava, todos os menores do pavilhão14 me pediram para tomar conta dele, alguns me ameaçaram, se não o fizesse.
  Fui junto a ele no primeiro dia, demos a volta na horta do japonês, já que, o declive da descida do campo do 14 era muito acentuado para ele, isso aumentava o meu percurso uns 800 metros, fui pelo caminho preparado para brigar, se alguém se metesse a besta.
 Mas qual, a simpatia do neguinho era fatal, em alguns minutos, já havia feito o que eu demorei umas semanas e, já o seu público havia aumento, na hora do descanso ele já mostrava a sua arte.
  Na volta, eu tinha que andar no passo curto dele, passávamos um descampado que levava ao lago, a mata à esquerda e o canavial do 11 à direita, seguia-se um pequeno pântano e chegava-se ao lago da horta e uma bifurcação, à direita vinha o campo do 14, bem em frente à mata.
 Corria entre os meninos, a lenda de uma cobra gigante que andava por aquelas paradas, dificilmente um guri não sentia arrepios, chegando à essa bifurcação.

 Em dias de chuva, devido à lama que se formava na estrada, o neguinho não conseguia subir o barranco da horta e, eu tinha que empurrá-lo morro acima.
  A cena era muito engraçada, toda aquela lama, eu com os chinelos nas mãos, escorregando e empurrando o Lucídio ladeira acima, eu gritando para ele colaborar e, ele se acabando de rir.
 Quase sempre, ficavam uns gaiatos do outro lado do campo, no barranco do mandiocal, eles sempre assistiam a cena e chamavam os outros meninos para assistir, quando chegávamos no pavilhão, estávamos cobertos de lama vermelha.
  Por essa época, o Roda estava com o habito de caçar cobras, para vender ao Instituto Butantã, eu fui à umas expedições que ele fazia na mata e, até inventei um cabo no bambu oco que prendia a cabeça da cobra, mantendo-a longe.

 Um dia, na saída, quando já íamos entrar na curva da horta, ouvimos um barulho na vegetação, voltamos e avistamos uma cobra enorme que media uns bons 12 metros, o Lucídio tremia de medo, eu estava fascinado, nunca imaginei ver uma daquele tamanho, se afastava lentamente na direção do lago.
  Resolvi que ia segui-la, para saber onde era o seu esconderijo, mais tarde eu chamaria o Roda.
  O neguinho ali parado, eu disse:
  _. Fique aqui mesmo, que eu já volto.
  E me apressei à bruta que, já estava longe... muito lenta, se encaminhou e quase desapareceu nas touceiras, sem fazer barulho continuei na espreita, na parte sombreada do lago havia uma enorme seringueira, embaixo da arvore, um buraco onde ela entrou muito devagar, quando metade do corpo dela havia passado, escutei uma correria atrás de mim, eram os amigos Edson, Téquinha, Spock, Adilson e Viana, vinham gritando e ao avistar metade da cobra silenciaram, ficamos os seis olhando.
  Ao final da cena, o Viana me deu uma piaba:
    _. Está maluco moleque?
  Voltamos para o caminho, imaginei que o Lucídio devia estar em pânico..., mas, espera aí...disse eu.
    _. Como foi, que vocês chegaram tão rápido?
  _O Lucídio chegou correndo, dizendo que você estava em perigo.... Não terminou a frase, desatou a rir, eu e os outros membros do sexteto caímos no mato de tanto rir.
O Lucídio, que não conseguia andar direito, acabara de quebrar a barreira do som.

sábado, 17 de junho de 2017

O lago




  É possível que as maiores mudanças que o Educandário Dom Duarte sofreu, foi durante a minha estada por lá, então vejamos:
  A fanfarra foi desfeita, o Grêmio se acabou, a colchoaria, a olaria e a cozinha central deram seus últimos passos, o lar 11 deixou de ser um pavilhão pra se tornar um asilo, a mata de trás da olaria e a horta do Japonês já não eram mais territórios do Educandário, conforme eu crescia, meus caminhos iam diminuindo, além dos amigos, os funcionários amigos estavam indo embora, aos poucos, o Educa foi perdendo o brilho da minha infância.
  Quando me fui, ainda que morasse no mesmo bairro, me recusava a transpor a portaria, não queria ver a casa da minha infância virar uma lembrança triste.
  Esse tempo durou até os meus filhos completarem a idade escolar, matriculei-os no grupo e, vi que meus medos não tinham fundamentos, o Educa havia melhorado, no tocante à educação, aproveitei e matriculei-os na Ozem, onde encontrei pessoas boas, educadores na melhor acepção da palavra.
  Meus meninos, feito eu, passaram a ter o Educa, nas melhores lembranças da infância.
  Sempre que eu estava de folga, fazia questão de levá-los ao prédio da Ozem, a tarde voltava pra buscá-los.
  Num belo dia, cheguei muito mais cedo e não queria ficar sentado na escada que dava caminho da cozinha para o Ozem, voltei pra perto do grupo escolar e me sentei na guia, de frente para o bambuzal, onde, em dias de aula, eu me sentava com os meus amigos, na parte de fora da guia precipita uma leve descida, que terminava no lago... esse lago não existe mais.
  Sentado ali, voltei mentalmente para aquele tempo, em que ali, existia um lago e, era um lago sem nome, dezena de árvores o circundava e isso dava uma sombra permanente, em horário de recreio, alguns casais corriam pra lá, debaixo da generosa sombra, se acariciavam e trocavam palavras de amor, mas logo vinha o padre Paulo ou o irmão Lacídes para expulsá-los de lá.
  Parecia uma água parada, as pequenas frutinhas e os galhos podres que caíam, as margens barrentas, davam a impressão de ausência de vida, nunca vi alguém pescando por ali, achava mesmo que naquela água rasa não haviam peixes.
  Por ser facilmente avistado da casa do Domingão, ninguém se arriscava a ficar muito tempo por ali, quase ninguém parava, era só passagem mesmo.
  Não tinha nome e, é provável que ninguém tenha feito uma foto dele, porém, todo mundo há de se lembrar de quando soldados do COI o atravessaram de moto, numa corda esticada nas arvores.
  E, para meu azar, essa foi uma mudança que eu tive que presenciar.
  Em 1982, reinava o clima de liberdade no Educa, os carrascos já haviam saído e os novos ares prometiam mudanças, marcamos um contra e misturados com os caras do 13, fomos enfrentar a rapa, ao passar pelo caminho da piscina, percebemos que o seu Paulo vinha com o trator na estradinha do lago, o Paulo tratorista era mais uma daquelas pessoas que ficaram na memória do menino que eu fui, mancava da perna direita por ter sido vítima de paralisia infantil e tinha um humor de cão, perguntamos o que ele ia fazer, ele disse que cavaria uma valeta e a água escorreria para contenção do campo, depois traria terra e taparia o buraco vazio, tudo rapidinho.
  Os meninos disseram que iam ficar para ver o serviço, eu disse que não ia ver, aquilo iria ferir a minha memória, deixar de jogar bola para ver um buraco sendo cavado? Sartei de banda.
  . Desci para o campo e me preparei para o jogo e, dava para ver o seu Paulo cavando a valeta, quando ele terminou a valeta, uma quantidade enorme de água inundou a contenção, aquela onde escoa a água da bica, e gradativamente foi se esvaindo.
  _. Pronto, já era o lago. Disse eu.
  Nesse mesmo momento, o Adailton do 20 gritou:
  _Peixe, peixe, muito peixe.
  Corremos e subimos o barranco, o lago estava seco, uma enorme poça de lama e os peixes se debatendo, dezenas de centenas de peixes, todos enormes.
  Em desespero, o seu Paulo gritou para que alguém corresse à cozinha e chamasse a dona Mercedes.
  Enormes panelas foram levadas para a cozinha central, devem ter ficado uma delícia, eu digo isso porque fiquei uns 3 dias sem comer na cozinha central, eu e a minha turma comemos peixe até de óculos.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Um conto, um ponto.



 
  Lá, para os lados do pavilhão 20, contavam histórias de almas que passeavam de noite nas estradas do Educandário Dom Duarte, todo mundo que trabalhava fora, esperava por um tempo na escada do mastro da bandeira, para engrossar a turma e partir para os pavilhões, se uma pessoa morava no 24, por exemplo, esperava alguém de algum pavilhão vizinho, pelo menos o mais próximo de seus pavilhões, para o nosso lado, acontecia a mesma coisa.
  Se tivéssemos que subir de noite, a companhia de alguém do 13 e do 12 ajudava, o problema é que da curva da jaqueira o caminho era só, quando se chegava à subida, se ouvia nitidamente passos no milharal, se se apertasse o passo, se podia ouvir as pegadas te seguindo, se se corresse, podia-se ouvir gemidos às suas costas.
  Cientes disso, os internos jamais andavam sozinhos à noite, eu tinha pena dos caras do 11, o pavilhão mais isolado de todos.
  Esses medos eram do tempo que éramos crianças, crescemos então e, no pavilhão 22, viramos adolescentes e, por via das dúvidas, continuamos a andar em bandos, se aparecesse alguma coisa no caminho, correríamos ...todos juntos.
  Por essa época, pegamos o hábito de caçar rãs no lago da olaria... eu disse caçar e não pescar como deveria ser e, eu explico:
  Quem pesca rã, o faz com a fisga, uma espécie de garfo com três dentes e, nós o fazíamos com torrões, aquele pedaço de barro que se seca na estrada.
  Íamos para o lago com um farolete e colhíamos os torrões pelo caminho, atraídas pela luz do farolete, as rãs se viam hipnotizadas, enquanto elas estavam distraídas, os torrões eram arremessados, ploft...
  E depois de uns poucos segundo, umas quatro ou cinco estavam boiando na superfície, só recolher, limpar, cortar, temperar e fazer o banquete.
  Em quase todos os finais de semanas, eu o Japonês e o Viana, fazíamos essa verdadeira Savana, íamos pelo caminho do campo de cima, beirando a Sabesp, que era o caminho mais fácil.
  Com a licença do leitor, vou descrever esse trio, no final isso vai ajudar na história, creio eu.
  O Japonês era palmeirense e católico fervoroso, o Viana era são paulino e simpático às religiões de matriz afros e, eu, corintiano e mariano.
  Quis o destino que, naquela noite, estivessem os 3 juntos.
  Quando já havíamos passado do campo de cima, bem na bifurcação que divide a estrada em duas direções (à direita, para a assistência médica e em frente, para a olaria) vimos o mato se agitar à nossa frente, a lua era cheia e não precisamos iluminar, o mato alto foi empurrado e paramos para poder enxergar o que podia vir dali, instintivamente, soltei os torrões, me abaixei e troquei-os por pedras, o Viana fez o mesmo e o Japonês ficou estático.
  Com pedras grandes nas mãos, ficamos esperando, o Japa ligou o farolete e jogou a luz naquela direção, o mato se abriu e um rosto negro surgiu, seu olhos não tinham órbitas e a boca parecia contorcida, uma nesga de sangue lhe escorria da testa.
  Reféns do horror, soltamos as pedras e queríamos correr, o Japonês deixou o farolete cair, nesse instante o homem se saiu todo do mato e veio em nossa direção, só então, percebemos que ele media uns dois metros e suas roupas eram nada mais que trapos rasgados, eu quero gritar e a voz não sai.
  A menos de metro e meio de nós, o sujeito faz menção de que vai se comunicar, sai um grunhido gutural, horrendo a nossos ouvidos, como alguém que não sabe falar, pigarreia e tenta firmar a voz:
  _Você não acredita?
  Ao dizer isso, estica a mão em minha direção e, eu estava no meio, o indicador vai direto para mim, se eu já não estivesse gelado, gelaria agora.
  _Não acredita? Sábado você vai ver.
  Ao dizer essas palavras, sorri e bate no peito, gritando um nome inaudível, a força do grito derruba o Viana ao chão, já chorava o Japonês ao meu lado, petrificado eu estava, petrificado fiquei.
  O homem, ou aquilo, correu e se meteu no mato, do lado oposto do que havia saído.
  Ficamos ali uns bons segundos a esperar o barulho no mato, o que indicaria que ele tivesse ido embora... nada, voltamos à estrada e nos encaminhamos para o 22 em silêncio, eram mais de meia noite e concluímos que algo aconteceria no sábado, não falamos pra ninguém.
  O Japonês e o Viana eram os meus amigos inseparáveis, na manhã daquele sábado percebi que os dois haviam sumido logo cedo, lógico que, se eu fui o apontado, a coisa ia cair nas minhas costas, não lhes culpo pelo medo de ficar em minha companhia.
  E eu, por incrível que possa parecer, levei o susto como coisa normal, racionalmente falando, o que podia um espírito fazer de efetivo contra mim? Então, quando a tarde se findou, botei a minha roupa de baile, levantei o Black e fui pra balada.
  Bom, balada mesmo não houve... assim que dobrei a esquina da João de Lorenzo com a Osvaldão, uma viatura freou ao meu lado e os ocupantes gritaram:
  _Mãos pra cabeça, todo mundo na parede.
  Já estavam na fogueira, o Nando, o Zóinho, o Galego, o Mauricinho, o Adir, o Valdevino, o Cezar e o Carlos, assim que eu me juntei a eles, começou uma sessão de espancamento, soco no estômago, coronhadas e tapas na cara, um dos policiais me tirou da fila e me deixou na calçada ao lado, a certa altura, um policial gritou:
  _Vocês não tem vergonha de dar mau exemplo pra aquele garoto? E apontou na minha direção.
  Seguiu-se uns 10 minutos disso e, ninguém me encostou um dedo, algemaram todos, uns nos pulsos, uns na canela,  jogaram todos no camburão e um deles fez com a mão que era para eu embarcar, sentei-me no espaço que me coube, antes de fechar a tampa, o homem quis saber se eu estava bem.
  No caminho até a delegacia da Vila Sônia, a barca acelerava e freava, os amigos eram jogados para lá e para cá e gemiam com as pancadas, eu estava solto e constrangido, permaneci em silêncio o caminho todo, simplesmente não acreditava naquilo.
  Quando a viatura encostou no estacionamento da delegacia, além dos quatro ocupantes dessa, outros policiais se juntaram, cerca de uns 10 e, formaram um corredor Polonês, logo atrás do nosso carro.
  Um policial abriu a tampa da viatura e foi tirando as algemas, livre das algemas, agora era passar pelo corredor, o primeiro foi o Zóinho e, ele deu azar, depois de dois socos, tropeçou e caiu, juntaram-se todos os policiais e passaram a chutá-lo e a pisar.
  E seguiu-se a ordem, um por um, os batedores gritavam de prazer e, chegou a minha vez.
  Não fui o último, desceu da viatura e andei o corredor inteiro, isso dava uns vinte metros, e andei em passo lento... nenhum policial levantou a mão, depois que eu passei recomeçou tudo.
  Todos foram indiciados, tocaram piano e entraram no xis, quando cheguei à mesa do delegado, o Ditinho já estava lá, e gritava com ele, por conta da violência que eu havia sofrido.
  E então... nem me venha perguntar se eu acredito ou não.