domingo, 30 de julho de 2017

O estranho destino das camisas alvi verdes.




  Sou corintiano e, isso é desnecessário dizer, faz parte do meu ser e todo mundo sabe disso, milhões de vezes, ouvi de amigos a frase:
  _Cara, você é uma pessoa brilhante, pena ser corintiano.
  Claro que, isso sempre foi dito por adversários e, nunca levei à sério a tentativa de me imputar um defeito, usando a minha maior virtude.
  Essa condição especial, assim como o nome, herdei do meu pai e nunca vou mudar.
  No Dínamo Futebol Arte, minha agremiação desportiva de coração, pelo fato de ser um ambiente de educação, sempre tive mais atitudes a favor dela, do que a favor do meu time de coração.
  Em 1993, foi feita na rua Osvaldão, uma foto com seis atletas, cinco com camisas de todos os clubes de São Paulo e um com a camisa do Dínamo, isso queria dizer que, todos os torcedores, de todos os times eram iguais e, nenhum deles estava acima do Dínamo.
  A diretoria era composta de seis membros, eu, o Tcheco, o Carlos Alberto, o Edison Regalau, o Biriba e o Júlio Martins...o último palmeirense, os outros cinco nasceram, são e morrerão maloqueiros.
  Muito embora, nunca discutíssemos sobre rivalidade, sempre usávamos camisas de nossos times.
  Num belo dia, um rapaz que morava no Jardim Arpoador, veio nos oferecer um jogo de camisas completo, era da marca Rummel...novinho, como na loja.
  Correram os diretores para ver aquela beleza, até o preço era de tirar o fôlego, porém e, sempre tem este porém, era das cores do Palmeiras, branco com detalhes verdes.
  O número das costas e a descrição da marca (verde) eram num tecido que lembrava a camurça e a parte que predominava, (branca) brilhava ao sol.
  Como todo mundo pode imaginar, o Júlio estava radiante com a roupa, o resto da diretoria fez uma rápida reunião.
  _. Lindo mesmo, mas, a cores do rival, está difícil.
  _. Não, propriedade do Dínamo, cores do Dínamo.
  E foi feito o negócio, a roupa foi direto para o time amador e vingou, deu sorte mesmo.
  A seleção do Dínamo passou a usar o branco e verde, que brilhava ao sol, muito embora, os dirigentes usassem camisas do Timão, pegava até bem, parecia uma agremiação livre de preconceitos.
  Depois que se acabou a seleção, a roupa passou para o escrete feminino, em jogos de certa importância, ela era exibida ao público e, as meninas davam shows pela cidade.
  O campo do Jardim das Vertentes fica próximo ao Jardim Peri-Peri, jogo marcado e as meninas estavam voando baixo, nesse tempo qualquer placar abaixo de cinco gols nem era comemorado.
  Show no campo e, no placar dez a zero, algumas pessoas da torcida da casa perceberam que apesar de o time usar as cores do Palmeiras, o técnico e a comissão técnica portavam as cores e estandartes do Corinthians.
  E, por vingança, se juntaram e passaram a gritar numa só voz.
  _ E dá-lhe porco e dá-lhe porco, olé, olé, olá. Como se estivem torcendo por nós.
  E então, mesmo que as meninas tivessem dado um sacode de quinze a zero, a tal camisa branca e verde jamais foi vista.

Um esquadrão de honra.


Falando como técnico, para se montar um elenco, basta juntar uns jogadores, distribuir as posições, muni-los com as roupas do time e manda-los ao campo, isso se, se quer um bom time.
Para se montar um esquadrão, com jogadores honrados, leva mais tempo, é preciso passar valores e regras de convivência e respeito ao esporte, à família, aos companheiros e aos adversários.
Quando o infanto-juvenil do Butantã entrou no campeonato da São Remo, em 1995, já era uma formação de pouco mais de dois anos, por esse tempo, se tem o amadurecimento de uma equipe, o time já estava, em termos futebolístico, jogando por música.
O Sandrinho, filho do Lino, se juntou ao time e isso deu mais dinâmica ao meio de campo, somado ao Alex e James, passamos a jogar com três volantes, mais liberdade para o Alemão e o Ademar nas armações de jogo.
Num dos jogos classificatórios, já havia terminado o tempo regulamentar e o arbitro se recusava em apitar o final do jogo, fui reclamar e ele disse:
_. Ué, deixa os meninos jogarem mais.
Empolgado com a atuação do time, o maluco queria assistir mais daquele futebol bonito, nossas apresentações enchiam arquibancadas.
Serem alunos da mesma escola e morarem, quase todos, na mesma rua, ajudava muito na amizade do grupo.
Por vacilo, chegamos ao último jogo sem o número de gols que desse para se classificar, isso, só eu sabia.
Bom...para testar a fibra do grupo, eu menti, disse que havia uma chance de classificação, a classificação viria se, vencêssemos o jogo por dez gols de diferença.
Essa história já contei em outra postagem, começamos perdendo por um gol e, no segundo tempo, viramos para 11 a 1, com direito à gritos meus e tudo mais.
Diz a regra da várzea que, se um time sofrer uma derrota por dez gols ou mais, fica obrigado a se desfazer do seu uniforme de jogo, ou seja, entrega-lo ao adversário, fechado na mala, na mesma hora.
Alguém da torcida gritou, outra pessoa concordou e começou um coral:
_. Entrega a camisa para o Dínamo.
O diretor da Ponte Preta, conhecia a regra e passou a recolher as camisas dos meninos, juntou-as todas na bolsa, camisas pretas com uma faixa branca no lado esquerdo, calções e meiões pretos, deixou no banco, para que eu fosse pegar.
Nunca passou pela minha cabeça ganhar aquela roupa, mas queria ver a atitude do time.
Diante das roupas do adversário, não houve um questionamento, sequer uma palavra, todos, viraram-se e foram embora.
Uma semana depois, estavam no morrão, catando bolas no córrego, para ajudar o time feminino comprar os uniformes.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

O túnel do tempo.


As propagandas anunciavam uma nova era, 1980 começou a nos desprender dos grilhões da ditadura e a aceitação dessa mudança era gradativa, lenta mesmo.
A grande maioria dos funcionários do Educandário Dom Duarte ainda se trajava com roupas das décadas anteriores, o seu Roque usava calças, camisas e botinas dos anos 50, o paletó do irmão José era remanescente dos anos 40 e o seu Tinoco usava sapatos de bico fino, combinados com as polainas dos anos 20 e, elas eram novas, bem como o chapéu de feltro, que ele comprava na rua José Paulino.
A dona Djalmira ainda mandava aos pavilhões calças e camisas de rações, as mesmas que foram confeccionadas na fundação do colégio e o engraçado do Turquinho ajeitava seus óculos de fundo de garrafa e, de quando em quando, puxava do bolso do colete, um grosso relógio com corrente, dava dois trincos no vidro grosso e dizia a hora exata.
O Travolta já havia dançado, anos antes, nos “Embalos de sábado à noite”, muitos meninos andavam com camisetas negras, sem mangas e outros usavam sapatilhas de Kung Fú.
O emergente Camargo e seu amigo Luiz Matos(filho do seu João do forno), se trajavam na última moda, calça grossas de Jeans ou Brim, combinados com camisetas Hering e os sapa tênis de camurça, isso contrastava com as calças sociais do Paraná e do seu Felipe.
Muito embora, o colégio se localizasse dentro da capital de São Paulo e, essa cidade se desenvolvesse à passos rápidos, o Educandário era uma ilha, alheia a qualquer ideia de crescimento.
Os meninos que tinham suas famílias, em fins de semana, travavam contato com a modernidade, os outros se quedavam nesse verdadeiro túnel do tempo e, a vida escorria lenta.
Vivíamos, em temos de tecnologia, a era A.S (Antes de Spielberg), o máximo de ficção científica a que tínhamos conhecimento, vinha dos gibis da Marvel.
Com medo de ser vítima de um cobreiro, o Adilson costumava pendurar a camisa na forquilha da trave do campo do 14, os outros as jogavam na grama, o Adilson tinha fobia a aranhas.
Essa mania do amigo me foi de muito lucro, sempre que eu chutava uma bola, tentava derrubar a camisa dele, mesmo para aborrecê-lo e então, quando veio o campeonato interno, na hora de bater uma falta, eu imaginava que a camisa do Adilson estava na forquilha e eu tinha que derrubá-la de lá, um gol mais lindo que o outro.
Voltando ao campo do 14, às duas e meia em ponto, os meninos se recolhiam, se lavavam e sentavam-se na sala do pavilhão e, religiosamente, assistiam a mais um episódio de “Jornada nas estrelas”, com o capitão Kirk e seu meio sorriso cativante, a tenente Uhura, o imediato Sulu e o nosso ídolo maior...o senhor Spock, o Vulcano que podia ficar bem no Educa, a cada besteira que disséssemos, ele diria:
_. Fascinante.
Findado o episódio, os meninos do 14 tiravam de suas cabeças, qualquer conceito futurista e a grama do campo voltava a voar.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Falando de racismo



 
  Nesse assunto, eu queria ter mais a dizer, pois sendo afro descendente, quase não conheci tal movimento, pelo menos, ninguém me disse na cara.
  Talvez a postura que eu tenha adotado desde a infância, de me manter sempre altivo e olhar as pessoas nos olhos, tenha me despido da roupa de vítima, pois quem não tem sentimento de inferioridade, jamais será discriminado.
  Tirando a passagem, que já contei da Consolação, quase nunca senti o preconceito contra a minha pessoa, porém, houve um caso em que senti o contrário disso.
  Estando eu com meus amigos do Movimento Negro, resolvi contar-lhes que era filho de branco, esses me olharam com pesar, como se eu não merecesse estar no meio deles, por uns instantes, tive o desconforto de quem é discriminado.
  Por sorte, lancei mão do resto da biografia do meu pai:
  _. Sim, branco, sambista e morador do Bexiga.
  E, para a minha alegria, houve um alívio geral, todo mundo voltou a sorrir, afinal, branco sambista, não é lá muito branco.
  Essa atitude, tomada por meus amigos, precipitou a minha saída do movimento, ficou-me claro que, o preto é tão racista quanto o branco e se, sempre considerei o racismo como a mais baixa das burrices humanas, não podia eu, andar acompanhado de tais cavalgaduras.
  Ah, houve outra vez e, essa foi no ginásio, serve como parâmetro de ilustração da minha postura diante do fato e, um final surpreendente.
  Fui mesmo, o único negro numa escola e ainda, o único interno de um colégio.
  Não como aquele garoto da série, os outros alunos não eram hostis, muito pelo contrário, o fato de eu ser negro e interno, me fazia o garoto mais popular da escola.
  Um dia, jogando na quadra, em hora de intervalo, dei um drible seco que entortou a coluna do Marcos, um guri loirinho que gostava de ser o tal, quando ele caiu na quadra, os outros guris que jogavam, junto com os que assistiam, começaram a rir e cantar, essa é a coisa mais natural entre meninos de ginásio.
  O Marcos se sentiu humilhado, não podendo revidar à altura, lançou mão do recurso torpe de ofender:
  _O que é isso aí, Negão???
  A linha de fundo da quadra terminava a dois palmos de uma parede de um metro de altura, atrás dessa parede, principiava um barranco de uns três metros.
  E foi em fração de segundos que, passei-lhe a rasteira, recolhi-o, como quem recolhe um saco de batatas e já estava com ele pendurado, pelos pés, na amurada.
  Nunca achei que o pobre do Marcos fosse membro da Ku Klux Klan ou simpatizante do partido nazista, mas ele havia transposto uma invisível barreira e tinha que se desculpar.
  _E agora, seu branquelo de bosta, pede desculpa ou vai comer terra...
  A cena foi mesmo espetacular, quase todos os alunos da escola estavam a olhar, havia uns professores e funcionários também e, de protagonista, eu estava bem na cena.
  É, mas se, o leitor pode acreditar que um guri de 13 anos é capaz de segurar um outro, com a mesma idade e com o mesmo peso, pela canela, por mais de dez segundos...está redondamente enganado.
  O Marcos caiu mesmo, já se levantou com um enorme galo na testa, levaram-no à enfermaria e ele saiu com um enorme faixa na cabeça e, enquanto todo mundo me dava tapinhas no ombro, como saudação pela atitude, eu permaneci em silêncio, sabia que havia exagerado.
  Encontrei com ele na saída e, podendo pedir desculpas, não o fiz.
  No dia seguinte, eu e o Djalma chegamos juntos no portão da escola e havia um grupo grande de alunos à minha espera, uma menina que era vizinha do Marcos me deu a notícia:
  _A avó dele vem para tirar satisfação, a mulher é muito braba.
  Todo mundo que vinha chegando, ao saber da notícia, ficava do lado de fora, os que já haviam entrado, ao saber da novidade, saiam para esperar o que estava por acontecer.
  _E agora??Perguntava eu, para mim mesmo.
  O Djalma planejava mil planos, falava em reação, golpes e mil coisas e, eu sabia que não podia fazer nada, o que é que eu podia fazer contra a avó de alguém???Nada.
  Duas quadras do portão da escola, vinha o Marcos acompanhado da avó, apesar de machucado, tinha um ar de quem vai se vingar, a avó não parecia muito velha, daquelas mulheres grandes de braços roliços, com bochechas rosadas e corpo largo, lembrava aquelas Mamas italianas das festas da Nossa Senhora da Achiropita, resolvi que tomaria dois tapas e abriria a corrida.
  O Marcos já me apontou de longe, enquanto a senhora se encaminhava na minha direção, abaixou a cabeça e as sobrancelhas se moveram, formando um V, dei tudo por perdido.
  _. Foi você, o guri que machucou o meu neto.
  _. Sim senhora, eu mesmo.
  Ela se aproximou-se mais, meus olhos se fixaram nos verdes dos olhos grandes dela, ela passou a gritar:
  _E, eu posso saber com qual autoridade???
  _. Seu neto teve uma atitude de racismo para com a minha pessoa.
  Ela murmurou muito baixo, alguma palavra que não deu para entender e, seguiu-se um silêncio tão grande, que deu para ouvir um Bem-Te-Vi ao longe, o rosto da senhora, que estava à instante carregado de ódio foi modificando, até toda tristeza ficar visível, ela teve que se abaixar para alcançar a minha altura:
  _. Me desculpa menino, te garanto que isso nunca mais vai voltar a acontecer.
  Com a mão direita, apertou a minha bochecha, a mesma mão que ela usou, em cheio, no rosto do Marcos, deu mais tapas e continuou, mesmo quando eles sumiram na esquina dava para ouvir as pancadas e os gritos do Marcos.

sábado, 22 de julho de 2017

Os vigilantes do Educandário Dom Duarte.


Ser vigilante, quero crer, devia ser um trabalho muito duro, essa coisa de trocar o dia pela noite e zelar pela segurança de quarenta e cinco internos de um pavilhão, enquanto eles dormiam...então, esses intrépidos homens podiam ser heróis, muito embora, eles fossem todos, muito engraçados.
O seu Matheus usava um bigode bem fininho, media uns metro e meio e ostentava solas inacreditáveis de vinte centímetros nos sapatos e, mesmo assim, ele continuava pequeno, seu andar fazia tanto barulho que ele não conseguia dar um flagrante nunca, quando alguém conversava no quarto e ele ia verificar, os saltos o denunciavam, dava tempo de o infrator fingir que dormia.
O seu Carlos tinha uma barriga enorme e usava um gorro parecido com o do Chaves, que lhe cobria as orelhas, possuía um rádio à válvula de 1945, às vezes, ele entrava no segundo dormitório e nos mostrava, pegava estações de todo o mundo, quando o rádio chiava, ele dizia que era por conta de chuvas no Japão.
A minha cama, no segundo dormitório, herdei do Alcione, que foi embora do Educa no mesmo dia em que desembarquei lá, não convivi com o neguinho, mas, a fama dele ficou no pavilhão.
A fileira da parede esquerda do segundo dormitório era nessa ordem:
Eu, o Feliz, o Luiz Dias, o Viana, o Hélio Lucena e o João Lucena...na sequência, começando de mim, um corintiano seguido de um são paulino, juntados com as duas camas do meio, o Oscar corintiano e o Zé Antônio são paulino, portanto, um total de oito, quatro alvi negros e quatro tricolores.
Na época do seu Odilon, o único vigilante do pavilhão 14 era o Nenê, por conta de ele ser irmão do larista...isso indica que estamos no ano de 1978 e, pelo frio da lembrança, o mês era agosto.
Era noite de clássico e, por mais que fôssemos muito amigos, a rivalidade vinha à superfície.
O único rádio Evadin era de propriedade do Feliz, ele não podia deixar no volume muito alto, então, os outros meninos tinham que se esforçar para ouvir a narração do José Silvério .
Jogo eletrizante, no intervalo o placar era de zero a zero e, entre os oito, começou uma discussão, no meio da discussão o vigilante meteu o pé na porta e gritou:
_. Tudo mundo pro currédô.
E vai, os caras das seis camas da parede, mais os dois do meio, de pijama, num frio de lascar, de castigo no corredor.
Ficar em pé no corredor era o castigo mais executado no pavilhão 14, sozinho era barra, dividido com os amigos, nem tanto.
O que ninguém sabia, era que o esperto do Feliz trouxe o rádio no bolso do pijama, na época havia um fone único e, malandramente, ele se posicionou no fim da fila, os outros sete o cobriam, assim o vigilante não podia vê-lo com o fone na orelha.
A fila do corredor seguia a mesma ordem, um corintiano e um são paulino, conforme os gols foram saindo, o Feliz falava no ouvido do menino da frente, esse passava para o da frente, até chegar no primeiro.
Quando o São Paulo fazia um gol, o torcedor passava a notícia e empurrava o corintiano, na hora do gol do Corinthians, a cena era repetida, tudo na maior discrição, sob o olhar atento do vigilante e, o jogo terminou com o placar de 3 a 3.
Depois do fim do jogo, ainda ficamos mais uma hora de castigo e, no dia seguinte não houve gozação com ninguém.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Só vivendo.



 
  Quando guri, todo mundo queria ser jogador de futebol, bombeiro, polícia e, de preferência, rico.
  Eu não, eu sonhava em ser diretor de time, não desses clubes badalados e poderosos, um clube de várzea já me servia.
  Isso mesmo, eu era um guri bem estranho, podia me ver tiozinho, jogando bocha com os amigos, brigando e roubando no jogo, é claro.
  Então eu cresci e não fugi do meu destino, na minha igreja, o campo, vi milagres e covardias, me salvei, salvando os outros.
  O campo da São Remo, fica na linha que divide o bairro da USP e o Rio Pequeno, a entrada da favela faz fronteira com o batalhão da polícia militar, quem sobe vai achar, no fim dela, o Hospital Universitário.
  Ali, o Dínamo teve tempos de glória e se firmou como um escrete poderoso, o Dínamo teve a honra de dividir a preferência com o time da casa, entre os moradores, haviam mais torcedores nossos que deles.
  Por se tratar de uma comunidade, estava sujeita às leis vigentes, as leis da várzea e às leis do comando da favela.
  A lei da várzea manda que se trate bem o time que visita, a lei do comando da favela manda a mesma coisa, em caso contrário, a lei da várzea cobra uma multa, a lei do comando da favela condena o infrator à morte.
  Houve um torneio em que o Tcheco Nascimento foi agredido em jogo e, principiou-se um tumulto em campo, houve muita indignação de nossa parte, o rapaz que agrediu o neguinho foi covarde, depois do tumulto os ânimos foram acalmados e, continuou-se o jogo.
  Quando íamos saindo da favela, o rapaz que agrediu chamou o Tcheco, se desculpou e, ele estava visivelmente com o medo nos olhos, boa praça que o neguinho é, perdoou e tudo ficou bem, fomos embora.
  E, pelo que todos sabem, esse é o fim da história...
  Nada disso, essa é a metade da história, vou contar o resto dela agora.
  Entre o hospital e a favela, havia o Circo Escola e, ali eu trabalhava, no período da noite.
  Nesse dia, eu agradeci à Deus por não ter acontecido coisa mais grave e fomos inteiros para casa, voltei às 10 da noite para trabalhar, eu não vinha pelo lado do Rio Pequeno, preferia vir pela USP.
  Quando cheguei na portaria, uma senhora me esperava e chorava muito, fui a ela e perguntei se podia ajudar.
  Era a mãe do rapaz que havia agredido o Tcheco, quase não conseguia falar direito, com muito custo me disse que o filho havia sido condenado à morte, por conta da agressão ao visitante.
  Pediu que eu fosse com ela até os traficantes e intercedesse em favor de seu filho.
  Meu chefe, que era morador da comunidade, me liberou e, lá vai o pobre do Niltão ao miolo da favela conversar com os mandantes.
  No meio da favela havia uma casa que faria um morador do Morumbi morrer de inveja, ela estava cercada por uns 30 homens, com armas que fariam os soldados do exército morrerem de inveja.
  Quando me avistaram, não tiveram receio, alguns deles eram jogadores do time da casa, um deles gritou:
  _O cara do Dínamo está aqui.
  A senhora ao meu lado chorava num desespero só, me perguntaram o que eu vinha fazer ali.
  _. Vim para falar em nome do menino que está para morrer.
  Um homem abriu a janela, supus que fosse o chefe, encarou-me e eu permaneci calmo, disse que não tinha como voltar atrás na decisão, questão de lei.
  Começou uma batalha de palavras, eu disse que o agredido havia perdoado ...nada, ele disse que era o código e não podia voltar atrás, apelei para a consciência cristã...nada.
  Todos os argumentos que eu usava, ele retalhava e ficava mais impaciente.
  Quando todos os argumentos falharam, fiz menção de ir embora, dei-lhe as costas e disse:
  _Sendo assim, o Dínamo não vem mais aqui, a senhora que ainda chorava, passou a gritar, a última chance de vida do filho dela havia falhado.
  Consegui mesmo dar uns sete passos, a voz do meu interlocutor não era mais ameaçadora:
  _. Ô que ignorância é essa???volta aqui, vamos conversar.
    . Pela manhã, eu estava no ponto de ônibus, um caminhão de mudanças buzinou, a senhora e o filho desceram e me agradeceram e me deram carona até a Paineira.