quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O João do Bode.

Parte de se viver órfão, era a solidão de não ter uma família, alguns vão usar isso como desculpa para não conviverem em sociedade e se estagnarem nesse mundo e, como consequência, nunca estarão completos, sempre a desculpa de não serem amados na infância.
O Educandário Dom Duarte não atendia só aos órfãos, grande parte dos internos tinham famílias e as viam em fins de semanas, quando não, tinham sempre os domingos de visitas, as famílias que não tinham condições de buscar o interno, compareciam nesse dia e armavam seus banquetes no gramado, do lado oposto do campão.
Bom, o órfão tinha uma única visita, o João do Bode.
Esse notório personagem, era um crioulo alto de sorriso fácil e alma de anjo, não sei se foi promessa ou, simplesmente o sentimento de voluntariedade que o impelia a ser um afro-Papai Noel dos meninos.
Alguns contam que ele havia sido interno da Casa da Infância do Menino Jesus e, por ser órfão, não recebia visitas, fora lá, por compensação, que ele havia começado, em domingos de visita e natal, a distribuir doces aos poucos que ficavam no colégio.
Então, ele compensou a tristeza da infância, passou a ser a visita de quem jamais teria.
Alguém sempre vai supor que, para tal empreitada, um sujeito tem que ter muito dinheiro, o João não parecia, pelas roupas que vestia, ser um sujeito de muitas posses não, ele comprava uma parte e arrecadava com amigos e comerciantes, juntava tudo num grande saco e distribuía.
Quando me mudei para o Educa, percebi que o João do Bode chegava regularmente às 14:00 horas, de qualquer canto que se estivesse, o grito ia passando, de boca em boca:
_O João do Bode chegou.
E, como se fossem tambores, quem estivesse em lugares distantes, saberia da notícia e corriam ao encontro, os meninos que estavam com suas famílias também corriam, de longe se podia ver a cena, um homem grande correndo, seguido por dezenas de guris.
Claro que os doces eram bons, isso conta no final da história, porém, para alguns internos, essa era a única visita.
Viva sempre, João do Bode, um homem simples, de atitude gigante.

domingo, 10 de setembro de 2017

Mundo cão.

Dizem que a vida é sagrada e, não se deve dispor dela...alguma escrita citada na igreja ou algum livro de autoajuda, sabe-se lá.
  As pessoas que dizem isso, vivem vidas relativamente confortáveis, recostam-se em suas cadeiras estofadas, ajeitam os óculos à cara e digitam palavras em suas máquinas automáticas, protegidos em seu mundo seguro, jamais farão a mínima ideia do que se passa na cabeça da menina esquálida que acabara de entrar no posto de saúde, capengando ela segue, a dor de seu corpo é nada diante da vergonha de ser alvo dos olhares de pena e reprovação, esses olhares tem um pesar latente, apontam e massacram.
  Chegar a esse ponto foi natural, um final à rigor para uma sobrevida, para Luciléia não existe nada que a prenda nesse mundo, de homens que batem em meninas e sem qualquer remorso, as violentam, um mundo de mulheres que fazem não ver a tudo isso, pessoas que machucam meninas em lugar de protege-las, melhor mesmo é sair disso tudo.
  A moça da recepção que a atendera, não viu que seu rosto estava deformado, não perguntou sobre a boca inchada e as múltiplas escoriações pelo corpo, tomou-lhe o documento e preencheu a ficha e... se visse, não faria diferença, a cena é comum e corriqueira nas periferias das grandes cidades, alheia jogou a ficha no balcão e virou a cara:
  _. Senta ali e espera que o médico já vem.
  O canto onde as portas dos consultórios se localizavam, ficava fora do saguão, um beco fora dos olhos dos curiosos, uma fileira de bancos vazios e a menina se sentou com cuidado para não sentir as dores do corpo e, não havia uma parte do corpo dessa menina que não doesse.
  Essa menina tinha 13 anos e já era esposa de um traficante, esposa por caridade e escrava sexual, de uma besta que via prazer em torturar, humilhar, espancar e violentar.
  E não havia como voltar para casa, essa vida de agora já era a fuga de uma vida terrível.
 Entre o tratamento que a mãe lhe dava e o tratamento que o traficante lhe impunha, não havia nem melhor nem pior.
  Luciléia tinha que esperar um bocado, todo o corpo lhe doía, uma dor que dilacerava feito infecção e crescia mais e mais.
  Percebeu que a porta do consultório estava entreaberta e, uma ideia lhe veio à mente, tinha que agir rápido, olhou em volta e ninguém estava atento à ela, levantou-se e entrou na sala, ao lado da mesa havia um armarinho, daqueles confeccionados de vidro, que a porta também estava aberta com uma grande quantidade de remédios.
   Luciléia notou que no cestinho de lixo havia jogada uma sacolinha de plástico, muito rápido encheu a sacola com todos os remédios que pôde e correu no corredor em direção ao banheiro, tão rápido que ninguém se deu conta da cena.
  Enquanto tirava os comprimidos das embalagens, se despedia das pessoas que a maltrataram, se despedia das surras e dos seguidos estupros, se despedia dessa vida de cão.
  Como já não comia há vários dias, teve dificuldade para engolir o monte todo, alguns comprimidos escorreram dos palmos juntos, os mesmos palmos apararam o jato de água da torneira e desceu tudo, tudo de uma vez.
  A moça da recepção achou estranho quando aquela menina esquelética saiu correndo pelo saguão e ganhou a porta da saída, mas não deu muita atenção ao fato.
  O sol bateu em cheio o seu rosto, um clarão intenso que a fez piscar, um último raio de sol antes da tragédia do final tão próximo, as pessoas que viram seu rosto nesse momento tiveram dificuldades para saber se seu rosto esboçava um sorriso ou fora o sol que feria os seus olhos.
  Já não via mais nada, as coisas se embaralhavam em sua frente, pessoas, carros e casas formavam uma massa uniforme e sem cor, tudo ficou cinza.
  Cambaleou uns trinta metros fora do portão do posto, tombou na guia e seu corpo rolou para dentro do córrego.
  Aquele mundo mal deu lugar ao azul infinito do nada.

sábado, 9 de setembro de 2017

O piano branco



Cheguei bem cedo, desci na Raposo e segui o caminho que sempre fazia para assistir os jogos, antes de chegar na avenida Corifeu, uma rua arborizada com lindas e grandes casas, a moça era produtora musical.
Vim com minha melhor beca, camisa branca e o mocaçim brilhando, mostrei o cartão ao segurança e o acompanhei pelo jardim, ao lado da casa principal.
O jardim era largo, bem cuidado e de extremo bom gosto, entre as rosas, haviam estátuas romanas em mármores, um caminho de pedras se seguia no chão, meu desafio era me manter em cima delas e elas faziam zig zag, fosse o que fosse, não queria sujar os sapatos.
No fim do jardim, um longo corredor com piso xadrez levava ao lindo escritório, a parte do solo era uma garagem, lá havia um carro conversível e, a minha total ignorância nesse assunto, não permitiu que eu identificasse, ao lado, uma escada em formato helicoidal levava à uma sala toda arejada com piso branco, parede branca e forro branco, o sol que entrava pelas janelas, batia e refletia, deixando tudo mais branco.
Não haviam muitos móveis nessa sala, algumas cadeiras, um sofá e um armarinho de vidro, bem no meio da sala, um solitário piano branco, o segurança pediu que eu aguardasse, pois, a moça não me esperava tão cedo, me deixou só.
Longos minutos e nem uma revista para ler, cheguei-me ao piano e dedilhei de leve suas teclas.
Um suave cheiro de jasmim precedeu a chegada da moça, se eu tivesse apostado com alguém, qual a cor preferida dela, eu teria ganho.
Chegou toda de branco e, me pegou ainda ao lado do piano.
_. Vou ter que tocar???
_. Não;
_Sorte sua, eu não sei tocar.

Vaias são da vida.



O próprio Antônio Brasileiro já foi vaiado, eu, não querendo me comparar ao maestro em envergadura, mas, já fui vaiado também.
Tendo ele como exemplo, tive a mesma calma e, aceitei a vaia, feito quando aceitei o aplauso da mesma torcida.
O campo da São Remo, fica no bairro do Rio Pequeno, um campo de terra batida, numa favela que é vizinha de um agrupamento da polícia militar.
Ainda que não fôssemos o time da casa, a torcida pendia para o nosso lado, os barrancos que circundam o campo estavam lotados.
Partida empatada e o empate levaria às cobranças de penal e, já que eu não devia nada para ninguém, saquei o craque do time, recuei o time e chamei o camisa 15, a reação da torcida foi imediata.
Apupos e xingos, a pobre da minha mãe virou doce na boca dos vândalos, me mantive calmo, dois minutos depois o jogador que entrou fez o gol, a torcida gritou.
Eu disse que aceito a vaia com naturalidade, eu menti, assim que o gol foi comemorado o juiz encerrou a partida.
Fui até o meio do campo, a torcida me acompanhou com os olhos, imaginaram que eu fosse agradecer o apoio, enfiei a mão um palmo abaixo do umbigo, enchi a mão e disse:
_Aqui ó, seus nojentos.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A primeira vez que eu vi o mar




  Nasci na capital de São Paulo e a minha primeira infância foi passada num colégio de freiras no Ipiranga.
  Tinha 4 anos e não conhecia a leitura ainda, mas, conhecia o mar dos versos de Vicente de Carvalho, que a irmã Dolores recitava e das canções de Dorival Caymmi.
  No mês de Janeiro, ficávamos acampados em Bertioga, numa escola municipal, no primeiro dia, mal o sol nascia, as freiras nos levaram para a praia e era, na época, uma praia vazia , antes de vermos o mar, já ouvíamos o seu barulho, com 4 anos eu tive medo.
  Quando pisei na areia, vi aquela imensidão, lá longe o sol principiava a subida e parecia pequeno, diante da imensidão daquele azul todo.
  Os outros meninos já estavam dentro d'água e eu olhava tudo com medo, seria redundância dizer que eu me sentia pequeno, já que, eu era realmente pequeno, uma onda veio me buscar, deixei que ela cobrisse os meus pés, a água estava gelada, me afastei.
  No horizonte, o sol já subia metade do corpo, a minha pouca idade tentava entender, aquilo tudo era muito maior que os versos do poeta ou a música, a madre Dolores Brasil chegou perto e pegou minha mão:
  _Mar, esse é o Nilton...Nilton, esse é o mar.
  Foi andando comigo para dentro da água, quando a água já chegava na altura do seu joelho, parou e ficou esperando que eu soltasse a sua mão, soltei e fui ter com os outros guris.
Lá para o meio dia, não havia fome nem ninguém que me tirasse da água.