quarta-feira, 1 de março de 2017

Tradições


Claro que não sou e nunca fui machista, quem manda lá em casa sempre foi a patroa, em quase todos os lares é assim, só que eu admito.Um homem fazer supermercado, vai contra a natureza humana, mas faço comida, lavo louça e troco fraudas.
Bom, aos domingos essa coisa muda, meu Timão joga e, como a mulher não gosta de jogo televisionado, nem passa perto da sala e, por duas horas, ela fica na cozinha ou no quintal, nessas horas, eu e meus filhos viramos torcedores, gritamos, falamos palavrão, nem adianta ligar que não atendemos o telefone, se houver algum assunto importante nesse período...esquece, nada é mais importante que o Timão, conta depois do jogo e, dependendo do resultado, nem conta.
Tradicionalmente, lá em casa sempre foi assim, desde que os meninos eram pequenos, essa é a única vez que o cavalheiro educado some e entra o maloqueiro da arquibancada, a mulher tem medo de passar pela sala, ou tinha, quando a convidei pra me acompanhar e aos meninos na arquibancada do estádio, ela me saiu com essa:
_Tá doido, eu não quero conhecer milhões de pessoas iguais a vocês, tô fora.
No começo do ano passado, jogou o Timão contra o Santos, lugares no sofá da sala tem uma ordem e ninguém pode mudar, isso dá azar.
O jogo estava morno, feio mesmo eu diria, os dois times estudando um ao outro e tal e coisa.
Só reclamações e jogo morno, passamos a conversar entre nós, falar das coisas extra campo, pra ver se a coisa melhorava.
Na cozinha a mulher começaria a fazer um bolo, saiu à cata da receita, acima da estante da televisão tem uma cestinha de remédios, onde também deixamos alguns caderninho de notas, a moça foi pegá-lo e ficou na frente da televisão, nesse exato instante o Timão fez um gol e só vimos no replay, ela saiu da frente e pediu mil desculpas, pulamos de alegria, no meio do entusiasmo, ela correu pra cozinha, pra se livrar dos selvagens.
Volta ao jogo e a coisa voltou ao marasmo, me veio uma ideia na cabeça e gritei pra ela:
_Ô madame, você não arrumou a cestinha de remédios, ela protestou mas, veio consertar o erro, eu e meus filhos a ver, ela entrou na frente da televisão de novo e o Corinthians começou um contra ataque, o narrador falou com mais enfase e ela saiu, eu disse:
_Fica tranquila, não está atrapalhando.
Voltou pro lugar e saiu mais um gol, gritamos, pulamos e nos abraçamos.
E ela ganhou o direito de, quando o jogo estiver ruim, transitar a vontade pela sala.

A melhor explicação.


Conheci o Soró no Pacaembu, em dia de jogo do Timão e, mais para frente, fui saber que ele era militante do partidão, feito eu.
Na militância, ele era de poucas palavras, quase ninguém notava a sua presença, no estádio se soltava, exaltava o time do parque, balançava a bandeira, batia tambor e xingava a mãe do juiz, feito esses malucos de torcida organizada e, em 1980, haviam poucos deles.
O Soró não era paulistano, era cearense e natural do Crato, no entanto, se alguém perguntasse do Fortaleza e do Ceará, ele fechava a cara e tascava:
_Não faço ideia do que você está falando, nasci maloqueiro e vou morrer corintiano.
Se o sujeito insistisse nesse caminho, ele engrossava e mandava tomar no...
Como nessa época, quem mandava em tudo era o Doutor, usando tática de guerrilha, invadimos o estádio várias vezes e, também fomos encaminhados ao departamento de polícia, como éramos menores de idade, nem chegávamos a ficar em celas.
Ele morava numa pensão na avenida Liberdade e eu alugava um quartinho na rua dos Estudantes e concordamos que o melhor lugar para apreciar uma boa cerveja, era na rua Maria Paula, bem de frente pro viaduto e São Paulo toda na porta da rua.
Num domingo morno, quando o sol caia por cima da cordilheira de prédios da 23 de Maio, iniciei uma prosa:
_Meu amigo Soró, como pode um cara que nasceu no Ceará, ser fanático por um time da capital, veja, eu sou nascido no Bexiga, filho e neto de corintianos, isso é normal, ninguém vai estranhar...agora, um cara do Crato, tem paciência Soró.
A garrafa da mesa já se findava, bebeu aquele restinho que ainda estava no fundo do copo, numa tranquilidade de quem só estava começando, levantou a mão para o garçom, mostrou dois dedos para ele, assim que se fez entender pelo garçom, respirou fundo e olhou na minha direção, com a maior calma do mundo disse:
_Caro amigo Niltão, não é por ter nascido nessa terra ou por razões de hereditariedade que você é corintiano.Você é corintiano de verdade, porque lhe faltam alguns parafusos na cabeça.
O garçom chegou com as garrafas e encheu os copos, sob a nossa vista, virou os copos para que o colarinho não fosse muito grande, eu já ria esperando o fim do pensamento do amigo.
Estalou os dedos no ar, como se isso fosse ajudá-lo a lembrar o ponto que havia parado a conversa...Ah sim, parafusos.
_Então, a mim também faltam os parafusos, a única diferença é que eu nasci no estado do Ceará.

Em memória de um amigo especial.


Não conheci o Valdir Nascimento no Educandário Dom Duarte, quando de lá sai, fiquei um tempo morando com o meu pai adotivo, o Ditinho da gráfica, no centro de Sampa.
E conheci-o, nesse tempo, ele era chefe da cozinha do Maksoud Plaza, disse-me que aprendera a profissão com o irmão Simão, quando era interno do pavilhão 16, homossexual assumido, tinha ideias próprias e uma dignidade na postura e, por conta disso, estava sempre envolto em discussões calorosas.
Quando eu cheguei no Educa, ele já estava saindo.
O Valdir costumava dizer que, toda pessoa, independente de religião, raça ou opção sexual tem que andar de cabeça erguida e fazer valer seus direitos. Nesse tempo, que o adulto em mim estava quase por se formar, esse adulto deu-me os últimos ingredientes e, é claro que ele virou um amigo de primeira grandeza.
Mais tarde, lhe apresentei a Ângela, de quem ele virou mais amigo ainda do que era meu.
Num tempo de dificuldade financeiras, convidamos-o para morar conosco, na Osvaldão e, ele experimentou, pela primeira vez na vida, o prazer de ter uma família, para os meus filhos, ele sempre será o tio Valdir.
Quando soube que era portador do vírus HIV, como era do seu feitio, não fez drama e encarou a situação de frente e, quando sabia que o fim se aproximava, internou-se.
Disse que queria poupar as crianças e, não queria que os amigos o vissem no fim, sem um sorriso.

Você gosta de Carnaval ?


A mim, não foi dada essa escolha. Nasci no Bexiga, filho de diretor de harmonia, tudo o que eu ouvia era samba, descobri mais tarde que o samba é a mãe de todos os ritmos brasileiros.
Minha vó Urbana era costureira da Vai-Vai, casa pequena na Major Diogo, a máquina de costura ficava ao lado da cama que eu dormia.
As moças a experimentar as fantasias e eu a fazer que dormia...
Então o meu amor pela Vai-Vai é sagrado e profano.

"Descobri que além de ser um anjo...


Eu tenho cinco inimigos “...
Nunca julguei o caminho de ninguém, no entanto, trilhei o meu e tentei passar aos meus comandados o caminho que eu julgo certo e, creio ter feito a diferença, não como um fanático e sim pelo simples fato de ser o certo a fazer, sem esperar nada em troca.
Quando cheguei à Chácara Bela Vista, tomei de assalto o comando do esporte, se não o fizesse, pessoas de má índole o faria.
Andei por todos os blocos, à cata de meninos, pra provar que praticar esporte seria mais lucrativo que ser aviãozinho do tráfico.
No recrutamento, um pai me disse:
_Não quero meu filho envolvido com essa gente do futebol, não presta essa gente do futebol.
Argumentos eu tinha, só não quis discutir e relevei, a opinião das pessoas deve ser respeitada.
Juntei esses meninos com os que já eram do time e aos meus filhos, dei a eles ensinamentos da vida e provei pra eles que heróis de verdade eram seus pais. o Dínamo passou a representar o bairro e, se nada funcionava e não havia condições, assim mesmo, nos tornamos exemplo de lealdade e correção, a ponto de todos os moradores torcerem por nós.
Os anos se passaram e uma epidemia se alastrou pelo bairro, a droga e o crime mostraram sua face horrenda.
Numa tarde de sábado, eu no meu comércio, por não haver jogo, quase todos os meninos estavam em frente da minha banca, ouvindo Rap.
Aquele pai, que anos antes havia me repelido, me chamou de canto.
_Eu sei que fui cretino, mas descobri que a única turma que não tem envolvimento com as drogas é justamente a turma do futebol, meu filho anda por aí sem rumo e eu queria que ele fosse feito os seus meninos.
Ainda que, soasse como vingança para mim, essa é uma situação que não me alegra ter razão, aquele menino, por ignorância do pai, já havia se perdido.

A aposta


Sempre vou afirmar que a Osvaldão era a rua das mulheres guerreiras, não é, nem nunca será exagero.
Duas Zulmiras, uma vinha de tarde do serviço e tinha um monte de filhos, a quem sustentava sozinha, essa Zulmira, magrinha com um olhar quase infantil e força de leoa na defesa de suas crias, a outra era mais velha e todos chamavam de dona Zulmira, a mesma história, sozinha a criar uma penca de filhos, essa ralhava com os meninos que brincavam com bola na rua porquê na frente de sua cerca cuidava das rosas e, em tempos de Cosme e Damião, dava doces para elas.
Criar os filhos, plantar rosas e dar doces, não é para qualquer um...ah, não é mesmo.
Quem passava de ônibus, subindo a João de Lorenzo e via aquele pedaço de rua, não fazia ideia de que um universo cabia naquela rua quase insignificante.
Os homens eram todos amigos e o ponto de encontro era no bar do Vô, um orelhão que servia a todos, ficava bem na porta e o número dele constava em todas as fichas dos moradores, era 810 3014.
Numa bela tarde de domingo, ninguém entendeu o fato de o Francisquinho ter sido carregado em triunfo, aplaudido e ovacionado, o motivo ninguém contou, nem para as mulheres nem para as crianças.
O Francisquinho e o Vô eram os mais velhos da rua, totalmente diferente um do outro e, assim mesmo, eram amigos.
Já disse que o pai da dona Maria cabeleireira contava causos de sua terra Ipiaú e o fazia como se declamasse um livro de cordel, quando contrariado, soltava a frase imortal.... Esta não, esta não.
O Vô, que também era chamado de Véio Dila, gostava também de histórias, as melhores histórias dele eram de presídio, ele havia cumprido pena em Ilha Grande e, na mesma cela de Gregório Fortunato, o Anjo negro, braço direito e amigo pessoal do presidente Getúlio Vargas.
Entre esses dois, a resenha era garantida e muitas risadas também.
Nesse domingo memorável o Vô chamou o Francisquinho de enrolador, ele, feito um galo de briga, subiu na mesa de bilhar e disse desaforos, claro que ambos bradavam e riam ao mesmo tempo.
Assistindo a pendenga, estávamos, eu, o Hamilton taxista, o Maurício, o Carmelo, o Paulo e o Clóvis, os últimos três, além de moradores, eram vigilantes do cemitério Israelita.
O motivo da discussão...todo mundo sabia que o Francisquinho, que já tinha mais que 80 primaveras, tinha um rabicho com a Mineirinha que, não tinha uns 30 anos.
Na opinião do Véio Dila, aquilo era só fantasia, na verdade, o baiano não dava contado recado, usando as palavras dele:
Só fogo de palha.
Ao que, o Francisquinho havia demonstrado ter ficado muito ofendido, gesticulava e falava alto, quando alguma mulher ou criança passava na rua, ele disfarçava, não me lembro de um dia ter dado tanta risada na vida.
O Vô sugeriu e todos toparam a aposta, cada qual com uma quantia e se casou o dinheiro, nesse instante, entrou na rua a mencionada Mineirinha, todos apostaram contra o baiano, só eu fui a favor dele.
Para que desse certo, o Francisquinho tinha que se esconder, ele entrou e se escondeu no balcão do bar, o Véio Dila fez sinal para a moça, ela parou e ele tascou a pergunta:
_Mineirinha, o Francisquinho dá no couro????
Todos os outros fizeram que não ouviram a pergunta, a Mineirinha respirou, coçou a cabeça e, não se limitou ao simples sim ou não, disse:
_. Uai sô, aquele véio tem mais fogo que esses meninos mudernos.
A cara do Vô foi ao chão, o baiano saiu do balcão glorioso, nessa hora eu já havia caído no chão de tanto rir.
Todo mundo dando vivas ao Francisquinho e a coisa ficou pior, derrotado, o Véio Dila deu um beijo nele, disse que ele era o seu herói, o Francisquinho afastou o amigo de si e disse:
_. Esta não.

Um ponto na história.


Quando estavam em idade apta pro trabalho, os internos começavam a trabalhar fora, e isso lhes conferia uma moral a mais, os mais novos morriam de inveja.
Todo santo dia, o cara tinha que entregar a marmita na cozinha central, de manhã, antes da sair, voltava lá e ela estava cheia...um bom dia pro irmão Simão e, bóra batalhar.
Muitos seguiam as profissão que fizeram curso no aprendizado, a grande maioria virava office boy mesmo.
Conta a lenda que o Pingola do 20, pegou um engarrafamento na avenida Brasil de 3 horas, desesperou-se e, diante de um ônibus lotado, traçou, sem cerimônia a marmita, a mistura era dois ovos cozidos, após ter terminado, arrotou, fechou a marmita e fez cara de paisagem.
Não sei não, o Edivaldo era meio doido e ele sempre saia com aquele meião verde do Guarani.
Voltando ao assunto, grande parte desses meninos eram boys, nas filas dos bancos e das repartições públicas se encontravam, e se ajudavam nas filas.
Esse convênio que o Educa tinha com as empresas, também era estendido aos menores da FEBEM, isso fez com que as relações se estreitassem e ficaram mesmo amigos.
E assim, enquanto uns ficavam nas filas, outros jogavam bola na rua, o movimento cresceu tanto que, em 1981 a rede Globo criou, nas manhãs de sábado, um programa esportivo chamado "Showbol".
Um campeonato de rua, os participantes eram oficce boys.
Até uns anos atrás eu tinha essa medalha.