segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu melhor amigo. (Parte primeira)


  . Quando cheguei à Casa de Infância do Menino Jesus, em 1970, tinha 4 anos de idade e, antes, passei um ano no Instituto Sampaio Viana, meu irmão fora deixado numa maternidade, pois era ainda de colo.
  Da copa de 70 me lembro pouco, passei o ano todo aborrecendo as freiras para que elas dessem conta de trazer o meu irmão.
  . Numa tarde, a madre Brasil me levou para a portaria, dizendo que a partir daquela data ela iria poder dormir tranquila, na portaria estava o meu irmãozinho, que nem idade tinha para estar lá, acabou virando o xodó das freiras e das moças.
  Hoje eu sei que, se não fosse isso, ele teria sido adotado por alguma família, provavelmente jamais nos veríamos de novo.
  Mas, nesse primeiro ano conheci o Fernandinho, que tinha o apelido de macaquinho e, em termos de natureza, era o oposto de mim.
  De pequena estatura, tinha mesmo a habilidade de um primata, subia na tela do pátio e pulava pro lado dos mais velhos, provocava uma briga e voltava rindo, antes mesmo que as moças se dessem conta do que havia acontecido.
  Eu era retraído e contemplativo, sentava na beira da alvenaria da piscina e ficava olhando os meninos brincando na gaiola, logo vinha o amigo com duas espadas feitas de jornal na mão e dizia:
_Essa é a sua, vamos tirar os piratas do nosso navio.
  Cruzávamos as espadas e corríamos em direção à gaiola, digo, navio...e assim, começava mais uma guerra.
  Por sermos tão amigos, juntos, formávamos uma pessoa só, na hora das broncas os nomes vinham sempre juntos, como se Nilton e Fernandinho fossem nome e sobrenome de uma pessoa.
  Nas horas de recreio, quando o recreio era na quadra, assim que a Cinira se distraia, subíamos na seringueira e sentávamos em seus longos galhos, olhando a avenida Nazareth, ficávamos apreciando os carros que passavam:
_O vermelho é meu, o azul é seu...e, se o carro fosse um DKV, era sempre do outro.
  Ficávamos ali por muito tempo mas, assim que a moça percebia a nossa ausência, vinha pro pé da árvore e passava a gritar o nome e sobrenome e o castigo era certo.
  Sempre dividíamos os castigos, numa tarde de inverno, para que a paz reinasse entre os meninos, a Margarida nos deixou de castigo naquela salinha que ficava no canto esquerdo da quadra e trancou a porta, passamos pela janela e, descobrimos que ela dava no fundo do teatro, exatamente embaixo do palco.
  Todas as roupas, as fantasias e instrumentos usados nas peças faziam daquele canto mal iluminado um país de sonho, depois disso, fazíamos sempre bagunça à espera do castigo.
  Além dos castigos, dividíamos as cintadas e, é claro que, não podia ser diferente, sempre que um via o outro chorando, desandava a rir.
  Um dia a Olga resolveu nos repreender no lavatório, levantou o chinelo e partiu em nossa direção, com largo espaço, cada um correu numa direção, batia na parede e voltava na direção oposta, a Olga corria para um lado e, não conseguia pegar e partia para outro.
  Com o chinelo levantado, tentava alcançar os meninos e nada...os outros meninos viam tudo da porta do dormitório e riam muito.
  A Olga que era muito branca ficou vermelha e arfava de cansada, os meninos continuavam a correr e a pular com o apoio da torcida, a Olga se deixou cair no chão e gritou:
_. Vão embora, suas pestes.
  . Na festa de São João, fizeram do mastro da bandeira da quadra, o pau de sebo.
Se subir numa árvore já é difícil, imagine subir num ferro besuntado, na ponta havia um enorme saco plástico cheio de brinquedo e milhares de doces.
  Eu nem tentei, os adultos e as crianças se revezavam na tentativa, perguntei para o Fernandinho se ele não ia tentar, ele deu de ombros e disse que depois iria, sem pressa.
  Como tínhamos tíquetes pra gastar na festa, fomos comer e brincar nas barracas, de quando em quando uma pessoa se arriscava a subir e o mesmo resultado...nada.
Assim que se acabaram os tíquetes o Fernandinho me disse:
_Vá e fique na gruta.
   Disse isso e partiu na direção do pau de sebo, assim que todos viram que ele iria tentar subir, fizeram um cordão humano em volta, eu que já sabia o que ia acontecer, fiquei fora do cordão e rindo, por antecipação.
  O Fernandinho pegou um saco de estopa e amarrou-o na cintura, com a habilidade que justificava o apelido, subiu num lance só, lá em cima pegou o enorme saco e o segurou no ombro, com a outra mão soltou a estopa e a jogou nas penas, pra que o sebo não as sujasse, escorregou.
  Ao chegar no chão, viu que todos o rodeavam, todo mundo queria um pedaço da glória, correu, todos o seguiram em direção à lavanderia, quando todos chegaram na porta de vidro, iniciou uma corrida na direção oposta, rumo à rampa da portaria, na entrada da portaria jogou o saco no jardim e se jogou, quando as crianças que o seguiam não o viram subiram a rampa que levava ao refeitório, cá embaixo nós nos acabamos nas guloseimas e dividimos os brinquedos.

sábado, 6 de maio de 2017

Um beijo para crescer



  Em Outubro de 1978, eu já havia fechado as matérias e ia pro Luiz Elias Attiê só pra cumprir tabela, havia passado o inverno, mesmo assim as mamoneiras, que acompanhavam o lado oposto da horta do Japonês, ainda amanheciam com uma camada de gelo, na metade do caminho o sol as derretia, esse fenômeno natural fazia com que ficasse a impressão de que elas ferviam, por cima da plantação, pairava uma suave névoa e, se saíamos dos pavilhões encapotados, nesse ponto, o calor nos fazia tirar as blusas e as amarrar na cintura.
  A minha turma ia se juntando pelo caminho, na altura do lago do 24 já estava em número suficiente para começar o coral, o repertório era composto de sucessos de Fagner, Belchior e Zé Ramalho e os meninos cantavam com sotaque rasgado, feito os cantores nordestinos:
..."Quanto tempo temos, antes de voltarem aquelas ondas"...
Fora o fato de eu ser um nerd, eu era invisível e, gostava de sê-lo.
Uma turma grande começou um incêndio no bambuzal do lago, eu estava na tropa, o irmão Augusto disse que estava escondido e vira todos que participaram do incidente, uma grande turma reunida e, ele foi tirando um a um, dos meninos que haviam participado do crime, quando chegou perto de mim desviou o olhar e.… eu tive a impressão de que, se ele esticasse a mão na minha direção, ela me atravessaria.
  Todos os envolvidos foram severamente punidos e, ninguém se lembrou que eu estive por lá, essa era a vantagem de se ser invisível.
  O Attiê nada mais era que, uma extensão do Educandário Dom Duarte, de ponta a ponta, os internos dominavam as ações, já tinham a fama de serem bons de bola e passaram, por conta de uns, a ter a fama de pegadores, muitos já namoravam e cresceu, entre as meninas da região, a vontade de ter um interno como namorado.
  Porém, isso ocorria com os meninos mais velhos que eu, eu dava sempre o azar de ser o amigo das meninas e, amigos são só amigos, não namoram.
  Entre as minhas várias amigas, havia a Valdeci, uma amiga de verdade, com quem eu conversava sobre literatura e mitologia, uma parceira de estudos e de muitas risadas.
  Quando o nome Valdeci era gritado em sala, ela tinha que engolir o constrangimento de atendê-lo, junto com o Valdeci do 13 e o Valdeci do 17.
  Minha amiga tinha quatro irmãos mais velhos, todos iniciados na carreira do crime, não era de todo feia, mas era alta, mais alta que o mais alto dos internos, por isso, recebeu o apelido de girafa, num tempo em que as meninas iam à escola com calças jeans apertadas, ela ia de vestido de chita, daqueles que a barra chega no tornozelo...então, esse conjunto de situações, acrescido pelo nome masculino, faziam da minha amiga, a pessoa que ficaria no fim da lista das pessoas que um guri quisesse namorar e, ela só queria um interno pra chamar de seu.
_E eu, não sou um interno???
_. Ah, você é meu amigo.
 Em certo ponto, ela colocou aquilo na cabeça, como se fosse uma prioridade, uma meta mesmo, podia ser o Arthur do 19, o Porfírio do 20, o Xodó do 21 ou o Mancha do 17, desde que fosse interno e popular... ela chegou a dizer que só assim, poderia passar da fase da adolescência.
_. Fala a verdade Niltão, eu sou feia???
_Claro que não, o que te atrapalha é esse seu nome, nome de moleque.
_. Esse era o nome do meu bisavô, minha avó exigiu que eu fosse batizada assim.
_. Está vendo, nem conheço a sua avó e, ela já é a segunda pessoa que eu mais odeio nesse mundo.
_. Quem é a primeira???
_O George Foreman.
 E, por mais que ela desse entrada, ninguém a olhava, ela era, aos olhos dos meninos, tão invisível quanto eu e, não gostava disso.
  No último dia de aula, haveria uma festa, iriam levar um som para a sala da oitava série e isso, seria a despedida do ano letivo, como eu disse antes, a discoteque não fazia o meu gênero e então eu não participaria daquele baile, eu disse isso a ela e ela fez um olhar que me deixou com medo, me fez lembrar do filme "Cárie, a estranha", segurou nos meus braços, com os olhos estalados e a boca bem perto da minha disse:
_. Venha querido, vou te fazer uma surpresa, não vais se arrepender.
  Era uma sexta feira, o último dia de aulas, arrumaram uma vitrola com grandes caixas acústicas e deixaram o som bem alto, um globo de espelho jogava luzes coloridas na penumbra, no meio da pista o Xodó dava seus passos tresloucados e dominava a atenção de todos, os meninos e as meninas hipnotizados com a dança e eu esperava meu par, doido para aquilo tudo acabar e eu ir jogar rebatida no campo do 14.
  Já estava impaciente, quando olhei pra porta da entrada e avistei a Valdeci, fiquei petrificado, ela estava vestida num colante azul com contas que brilhavam, a saia preta colada ao corpo tinha um rasgo lateral e mostrava-lhe as pernas inteiras, toda maquiada, com os cabelos negros esvoaçando e um gostoso odor de alfazema a seguia, eu estava no fundo da sala, para chegar até onde eu estava, ela veio em passos lentos, à medida que ela passava os meninos paravam de dançar, mesmo os que estavam acompanhados, aqueles que sempre a desprezaram, agora a olhavam com olhar de cobiça, a despeito de todos os olhares ela continuou vindo a mim, me desencostei da parede e perfilei, como um cavalheiro que merece uma dama.
  Ninguém mais dançava, aquela menina que ninguém conseguia ver, agora os hipnotizava e, diferente das meninas que ali se encontravam, ela tinha um corpo escultural de uma mulher adulta, já do meu lado e me abraçando ela disse ao meu ouvido:
_. Fecha a boca Niltão, quer um babador???
  Eu, que costumo dizer besteiras em horas impróprias, fiquei calado, estava tão surpreso quanto todo mundo que me olhava com inveja.
  Mas, mesmo que eu não soubesse o que fazer, eu sempre tive amigos e quem tem amigos não morre pagão, o Gibi foi na vitrola e jogou no ar "The Commodores-Easy" e diante de todos olhares, não me fiz de rogado, encostei o rosto no rosto da amiga e rodei um floreado com ela, a mão direita na face e a esquerda na cintura, ao fim da música ficamos ainda com os rostos colados, como vingança já era suficiente, mas nos deixamos ficar assim.
E, os dois amigos invisíveis se beijaram na boca, um beijo demorado, que marcou a despedida de uma fase de suas vidas.

A conduta.


Se diz que, "tudo o que aqui se faz, aqui mesmo se paga", sempre acreditei muito nisso, portanto, sempre semeei a paz, na esperança de a colher mais tarde.
Não fique o leitor enfadado, pensando que vem por aí uma história de conteúdo espiritual, cheia de mi-mi-mis com fundo religioso, não...só vou contar uma história com dois tempos, para mostrar que a conduta certa tem, no final, suas compensações.
Continuando a estrada do pavilhão 14, cerca de uns 800 metros mais, se chegava ao Cenáculo, os mais antigos o chamavam de pavilhão 25 e, eu nunca entendi o motivo disso.
Nesse prédio, viviam as freiras e as noviças que praticavam a caridade e acredito que, ainda hoje o fazem.
Era muito comum, por aqueles tempos, essas amaríssimas mulheres, distribuir cestas de alimentos às pessoas necessitadas e enxovais para os bebês que estavam por chegar e ministravam cursos também, por conta disso, vários moradores dos arredores do Educandário Dom Duarte, aos fins de semana, procuravam o auxílio das freiras do Cenáculo.
Como eu disse, para se chegar à caridade das freiras, fazia-se necessário o uso da estrada do 14, parte dos meninos desse pavilhão achavam que a estrada lhes pertencia.
Bom, a Tereza não era uma menina comum, tinha um quê de beleza sim, no entanto, se vestia feito moleque e brigava também, tal e qual um moleque.
O parceiro e fiel escudeiro dela, atendia pela alcunha de Muçum, era escuro feito a amiga e tão boca suja quanto, uma pessoa que não reparasse bem, pensaria que se tratar de dois guris.
Quando passavam pela estrada, geralmente acompanhados de algum adulto, devolviam os palavrões que os internos lhes impunham e, quando desacompanhados, passavam correndo e provocando, na volta, eles usavam o caminho da igreja.
Eu nunca concordei com essa besteira de propriedade e, quando os meninos do 14 programaram uma armadilha, eu disse que não participaria, a minha opinião contava pouco e, à minha revelia, foi planejada a vingança.
No sábado combinado, os internos ficaram escondidos no bosque à espera das vítimas, eu fiquei no barranco das uvalhas, bem em frente ao pavilhão, não participaria, mas, teria uma visão privilegiada da contenda, como cabe à todo bom historiador.
Eram mais ou menos duas e meia da tarde, quando a Tereza terminou a subida da jaqueira e apontou na estrada, pude vê-la e ao Muçum, eles vinham com os olhares preocupados, pressentindo mesmo o perigo, dessa vez, porém, eles tinham companhia.
Havia com eles um guri menor, se a dupla tinha uns 12 anos, como era a nossa faixa etária, o guri branquinho e magrinho aparentava uns nove, dez anos, no máximo.
Quando o trio chegou à curva da estrada, na bifurcação que faz divisa com o lar 17, os internos saíram de seus esconderijos e os surpreenderam, alguns tinham torrões nas mãos, outros carregavam paus, contava-se sete contra os três, pulei do barranco e fiquei no meio:
_Opa, no pequeno ninguém encosta a mão.
Peguei o guri pela mão e, diante dos olhares de reprovação dos amigos, levei-o para o barranco.
Lá de cima, pudemos ver a maior comédia de todos os tempos, a Tereza, dava raquetadas feito gente grande, o Muçum se entregou fácil, mas a Tereza dava socos, pernadas e cabeçadas e, com as punhos fechados à frente da cara, chamava os meninos pro pau.
Quando parecia que a menina já estava cansada, ouve-se um barulho vindo da direção do 12, era um barulho característico de motor de fusquinha 1300, imediatamente os meninos do 14 somem no mato, o menino que estava comigo e, juntamente com os dois que brigavam, aproveitam e saem correndo.
Haviam duas opções, podia ser o carro do irmão Domingo ou o fusquinha do seu Odilon e,  quando o carro aparece, não era nenhum nem outro, era o padre Eduard, o americano.
Meus amigos não me quiseram mal por conta disso, todavia, eu fiquei uns meses rindo deles, sempre que eu ouvia um desaforo, vindo deles, batia no peito e dizia:
_. Pelo menos, eu nunca apanhei de menina.
Isso, meus caros, se deu no ano de 1979, pegue o calendário e vire as páginas rápido, só pare quando se passarem três anos, pronto... o ano agora é 1982.
Ainda somos amigos, só não somos mais crianças, não brigamos por conta de estradas, não somos mais os “Índios do 14”, pelos arredores do Educa, somos conhecidos por “Neguinhos do Educa”.
A Tereza agora é uma mulher linda, dança rock samba, é levada com uma habilidade sem igual, as largas ancas, a boca carnuda e o colo avantajado, não lembram nada a aparência quase masculina que ela ostentava no passado e não briga mais para passar, sua formosura lhe garante passe livre em qualquer caminho que ela queira e, por ela, os selvagens se atracam, agora é chamada de Tereza Aragão, por conta do sucesso do Jorge Bem.
Quando vi a Tereza num baile, morri de rir dos amigos, mas ela nem se lembrava daquele episódio, para a sorte dos amigos.
A primeira vez que estive na casa da Ângela Camargo Victorino, havia acabado de lhe propor namoro, recebi um sonoro NÃO, fiquei meio desanimado, mas não ia me entregar fácil mesmo, do lado de fora da casa dela encontrei um rosto conhecido, o rapaz me disse:
_. Hei, você não é aquele cara que me salvou no Educa???
Relembramos a cena e demos boas risadas, disse que era irmão da Ângela e que me devia muito, um dia iria pagar.
É claro que prontamente eu respondi:
_E para pagar é muito fácil, está vendo a sua irmã???fala bem de mim para ela.
Bom, aquele molequinho virou tio dos meus filhos.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Pobre menino rico.


Quando fui estudar no Vidigal, fazia parte de uma estratégia para que os internos estudassem fora, isso deu certo e mandaram mais três pra lá, eram o Gil do 20, o Coquinho do 24 e João Augusto do 12. Como eu estava doido pra montar um time de futsal só com internos, faltou um.
Um guri chegou e nos disse:
_Se me deixarem completar o time, pago Tubaína.
Ah, na hora... esse guri passou a integrar a equipe, a cada jogo, além da Tubaína, tinha pão com presunto e queijo.
O Amadeu era filho de um promotor de justiça viúvo, por ser oriundo das classes mais desfavorecidas, obrigava o filho a frequentar a escola pública. Todos os dias, uma senhora negra vinha o buscar na escola e ele a tratava de mãe.
Éramos o oposto, ele era filho único e eu dividia a casa com mais 44 irmãos, ele tinha muito dinheiro pra gastar e eu vivia com os vale-transportes do seu Tinoco.
Contrariando a lógica, ficamos muito amigos, até por que, ele costumava colar de mim as matérias.
Um dia, na saída da escola, ele propôs uma brincadeira, cada um ia almoçar na casa do outro, passar uma tarde no mundo do outro.
Acertamos os detalhes e apertamos as mãos.
A primeira foi na casa dele, a mulher que ele chamava de mãe, era a empregada da casa, o quarto dela era maior que a sala do pavilhão 14, durante o almoço o pai dele me cumprimentou, fez várias perguntas, pra saber o que eu e o filho dele tínhamos em comum, ao final lançou o veredito:
_O Amadeu tem melhorado na escola, você está ensinando ele, né?
Rimos a valer da cara de contrariado do Amadeu.
Depois fomos pra uma sala que tinha um lustre direcionado pra uma enorme mesa de bilhar, toda em madeira de mogno e um imponente tapete vermelho.
_Cara, você tem uma mesa de bilhar em casa?
Imagine a cara de inveja do menino pobre pra cima do menino rico, passamos a tarde toda naquela mesa.
Para pegar o bandejão do Educandário Dom Duarte, ele chegou uns 10 minutos antes do meio dia, eu o estava aguardando na portaria e subimos na estrada de paralelepípedos.
Viu do lado esquerdo o majestoso campão, com seu tamanho oficial, a casinha e o vestiário.
_Cara, você joga nesse campo?
Imagine a cara de inveja do menino rico pro menino pobre.
Sem nos preocupar com nada, ficamos na fila da cozinha central.
A chefe era a dona Mercedes, assim que percebeu que o menino era estranho, ficou com olhar de poucos amigos e foi ter conosco.
Já disse que eu tinha cara de anjo e sabia usá-la quando se fazia conveniente.
Com calma, tirei a dona Mercedes de lado e disse:
_Esse é um menino sem família, disse pra ele que podia almoçar aqui hoje.
Isso dobraria qualquer pessoa ruim e a dona Mercedes era um doce, além de mãe e avó.
Assim que as minhas palavras entraram em seus ouvidos, ela pegou na mão do menino e o tirou da fila, levou-o pra uma mesa e mandou que ele esperasse lá, num prato de vidro colocou uma comida melhor do que aquela que serviam nas bandejas e o serviu.
Quando saíamos, veio a dona Mercedes e lhe deu um embrulho.
_Isso é um lanchinho, pode vir aqui quando quiser.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Um prelúdio


Uma vegetação separava o campão da subida de paralelepípedos, uma cerca viva e, não nos atenhamos ao nome que ela possa ter, na primavera ela dava umas flores de um tom de rosa desbotado, a mesma cerca separava a quadra de terra batida do fosso do campão, onde o seu Alones corria todas as tarde e, essas, eram de um rosa quase vermelho, a casa do seu Paulo tratorista, que todos chamavam de lar 10, tinha a mesma cerca, só que ali, elas nasciam amarelas.
No espaço baldio, entre a coelharia e a assistência, bandos de andorinhas e bicos-de-lata disputavam no capim alto, os dois bandos marcavam presença na base do alarido.
Atrás do pavilhão 12, a dona Tereza plantou uns pés de dama-da-noite, eram lindas as flores brancas e, nas noites mais escuras seu odor adocicado se espalhava e, em toda a planície norte do Educandário Dom Duarte se podia senti-lo.
E existem pessoas que viverão uma vida longa, sem ver nada disso.

terça-feira, 2 de maio de 2017

A Cleide.


Júlio era o nome do homem que administrava duas hortas que se encontravam dentro das terras do Educandário Dom Duarte, nascido na terra do sol nascente, quase ninguém o chamava pelo nome, as hortas eram do Japonês e pronto.
Uma delas ficava ao lado do campo do 14, uma boa parte da estrada que levava ao cenáculo, caía num aclive longo e morria na parte baixa, quando encontrava o lago. Essa parte, agora, pertence ao CDHU-Educandário.
A segunda horta ficava nas encostas da fileira de pavilhões que se seguiam na estrada da pensão, uns três lagos, incluindo o do 24, a abasteciam, essa, se encontrava onde hoje compreende as terras da COHAB-Educandário.
A turma que estudava pela manhã, podia ver o esguichar da irrigação, eles formavam arco de água e mantinham a plantação sempre molhada.
No fim da horta, se encontrava a Escola Estadual de primeiro grau Luís Elias Attiê, eu e meus amigos estudávamos nela, desde a inauguração, um ano antes.
Estamos em março de 1979 da era cristã e, depois de dois anos seguidos, ter tido o desprazer de estudar em salas onde predominavam alunos do gênero masculino, sendo que, eram todos internos, minha sala tem meninas e são elas:
As duas filhas do seu Alfredo, que quase não falavam e eu, imbecilmente, esqueci-lhes os nomes, tem a linda Claudia, que é sobrinha da dona Havanir, tem a encantadora Ylka, a filha da professora Íris e do João Bellini, a Verônica, filha do seu Valdemar sapateiro, a Norma e a Nazaré, que moravam na Osvaldão, a Lígia, aquela bandida que me roubou o coração, tem também a Valdeci, aquela que contei uma aventura de beijo e, por fim, a Cleide.
Pelejei para coloca-la um predicado adequado e, adequado mesmo só me veio a palavra esquisita.
Já disse que, por esse tempo, menina nenhuma queria conta comigo, quando eu avançava nas negociações, virava amigo, então eu era o amigo das meninas e, quando eu não soava na quadra, estava rodeado de meninas, digo, de amigas.
A Cleide era uma guria de estatura baixa, olhos dum castanho próximos do mel, sardas no rosto, nariz e boca finos e suaves, não se podia ter noção da sua silhueta, pois ela usava roupas largas, ou peça por cima da peça e, quando ria, lembrava o freio de um automóvel.
Quando riu, pela primeira vez em sala, fez com que todos rissem também, ela olhou desafiadora para todos, da sala toda, apenas um guri não riu...eu.
Ao meu lado direito havia uma carteira vazia, ela se levantou e se mudou para lá, agora estava perfeito, a esquisita ao lado do esquisito.
Ela morava no BNH, por esse tempo, pessoas que moravam no BNH eram tidas como classe média, classe média em periferia é burguês, então ela negava esse fato, dizia que morava na Vila Operária.
Ao contrário da Valdeci, a Cleide não era nerd, entrava na conversa em hora imprópria, tinha mania de, quando conversava, ficar pegando na pessoa e, de quando em quando, dava a sua risada, chamando a atenção para o trio de esquisitos e, assim mesmo, quando ela faltava às aulas, sentíamos a falta dela.
Num belo dia, no pátio, enquanto ela ajeitava a gola da minha camisa e eu tirava a mão dela, me veio com essa.
_meu querido, domingo agora é dia de visita no Educa, certo???
_. Isso, domingo de visita.
_E você recebe visitas???
_Claro que não, vivacidade, como é que alguém que não tem família vai receber visitas???
_. Então está combinado, eu vou te visitar no Educa.
É claro que a ideia era absurda, ridícula e sem sentido, respirei fundo e disse:
_. Tudo bem, mas vê se veste umas roupas de gente.
Saindo da escola, naquele dia, não fui com os amigos, no caminho da horta, sai pelo portão da frente e fui com a amiga ao BNH, ela contou para os pais, que também eram esquisitos, e eles nem questionaram, me recomendaram que não deixasse a filha correr qualquer tipo de risco.
_. Podem deixar, seu Justo e dona Lourdes, não se preocupem.
Nem me passou pela cabeça que ela pudesse correr algum tipo de risco, vesti a minha melhor roupa, já era domingo, as visitas entravam na portaria, não tive inveja de ninguém, a minha visita chegaria em breve.
Então ela chegou e, estava linda numa calça jeans azul e tênis azul, a camisa Hering rosa deixava transparecer o formato de seios que ainda não cabiam em algum sutiã e os cabelos soltos esvoaçavam ao vento, me deu um beijo na face e dependurou no meu braço.
_. Caramba, por uns segundos, pensei que fosse uma mulher.
_. Pronto, acabou de estragar uma cena digna de cinema, seu esquisito.
Ao abrir-nos o portão, o seu Felipe deu um olhar cúmplice de aprovação e sorriu.
Subimos a estrada de paralelepípedos, na grama, as famílias estendiam as toalhas e saboreavam seus lanches, comidas feitas pelas mães, não pelo irmão Simão, à medida que subíamos, eu ia mostrando os prédios e dando os nomes deles, um a um, como se fosse um guia turístico.
Nunca havia passado pela minha cabeça namorar com a Cleide, mas talvez eu a pedisse ao fim da visita.
Passamos no 14 e ficamos um tempo com os amigos e eles contaram tudo sobre ser um interno, claro que a Cleide ficou fascinada, como não havia larista, entramos no pavilhão e mostramos tudo, saímos pela estrada do 12 e chegamos nas jabuticabeiras do 11, não precisava subir no pé para apanhar as frutas e, ela fez questão de subir.
Tudo ia maravilhosamente bem, mas o tinhoso quando está de folga, manda o secretário, nesse caso, os secretários.
No meio do caminho, entre a assistência e a casa do irmão Domingo, ficava a serralheria, de lá pularam quatro guris na estrada, disseram que ninguém podia passar por ali, ficaram a uns quinze metros de nós, com pedras nas mãos.
Tratava-se do Romão, o Ronaldo, o Valdeci e o Luizinho...dois do meu tamanho e dois menores, para que não houvesse perigo para a menina, eu tinha que negociar.
Fiz sinal para que ela ficasse ali, levantei as mãos e fui ter com os guris do 13 que, na época, não eram meus amigos.
Quando cheguei bem perto, passei a explicar que qualquer coisa que acontecesse à menina, poderia gerar grandes complicações, estava já chegando à um acordo, quando olhei para trás, a menina estava descalça e com as barras das calças arregaçadas.
Como eles tinham os olhares presos em mim, não perceberam que ela havia iniciado uma corrida, só deu tempo de eu sair de lado, ela pulou com os dois pés e atingiu o peito do Valdeci, no impacto, o Romão caiu junto, os dois maiores estavam no chão, os dois menores correram para o pavilhão, pegamos os tênis dela e nos apressamos para sair dali.
Os guris que haviam corrido, voltaram com o resto que faltava do pavilhão e, já corríamos em velocidade, para qualquer lado que corrêssemos seriamos alcançados, ao passar pela frente da casa do irmão Domingos gritei:
_. Ô Domingão.
Feito isso, paramos de correr e ela passou a calçar os tênis, o irmão Domingo saiu e quis saber quem o havia chamado, eu disse que não havia sido nós, talvez o grupo que vinha correndo.
O bando não tinha como saber, a casa fica no fim da curva, só viram que nós sumimos e, quando nos acharam, deram de cara com o diretor e já imaginaram que haviam sido caguetados, usando um termo educandáriano, fizeram meia volta, o irmão Domingo é quem corria, agora, atrás deles.
Descemos o bambuzal e voltamos para a grama, onde as famílias se reuniam, a mãe do Adalberto que, em domingos de visita, desde a Casa da Infância, fazia o papel de minha mãe, nos convidou para o banquete, delicia de bolinhos de bacalhau com amêndoas.
Por garantia, levei a moça para casa, os pais perguntaram-me se tudo correra bem.
_. Tudo normal, seu Justo e dona Lourdes...tudo normal.